domingo, 6 de julho de 2014

Pai, ouve-me!

Kramer contra Kramer - Sinopse

Para Ted Kramer, o trabalho vem antes da família e Joanna, sua mulher, descontente com a situação, sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem de se preocupar com o filho, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com ele e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar-se a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted, porém recusa-se e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy que é entregue a Joanna. No dia marcado para ir buscar Billy a casa de Ted, e já à porta do prédio, decide não sujeitar o filho a uma nova etapa de instabilidade. Entra para comunicar a sua decisão e todos ficam a ganhar.


Pai, ouve-me!

Personagens

CAIO, homem jovem, alegre e feliz, aguarda, numa sala de partos, o nascimento do seu primeiro filho. Sente-se absolutamente preparado para o receber.
HUGO, o filho, coração e mente cheios de sabedoria, tem urgência em ter uma conversa com o pai antes de nascer.
Ato Único
O ventre que acolhe Hugo, por pouco mais tempo, irradia uma luz quente e intensa. Um foco potente ilumina Caio, que agarra carinhosamente a mão da mulher.

HUGO
(Em tom perentório)
Pai, não te assustes, eu quero falar contigo.
(Caio levanta-se e olha admirado para a barriga da mulher, notando uma forma repentinamente diferente. Sorri perplexo.)

HUGO
Pai, eu quero falar contigo.
(Decidido a fazer-se ouvir)
Não falta muito para eu nascer e eu preciso de te ensinar umas coisas. Quando nos olharmos olhos nos olhos, passarei a ser por muito tempo uma criatura desprotegida. Agora, ainda tenho a sabedoria primordial deste paraíso em que me encontro.

CAIO
(Puxando a mão da mulher ao peito.)
O que se passa, Guida?

HUGO
Pai, deixa a mãe. Ela precisa de estar tranquila para que a naturalidade deste ato não se desvaneça.

CAIO
Seja, filho. Mas não te preocupes, eu e a tua mãe fomo-nos preparando muito bem para sermos pais conscientes…

HUGO
Sim. Eu sei que me vais dar banho, vestir, mudar a fralda e essas coisas…

CAIO
Claro…

HUGO
Mas, olha, se um dia eu quiser ser um cachorrinho, tu fazes de cão grande para brincarmos? Se eu quiser pintar com as mãos, tu depois tiras-me a tinta toda? Vais ser capaz de fazeres de pai natal na escola e em casa? Vais ter paciência para brincares às escondidas no nosso pequeno apartamento? Vamos poder fazer piqueniques com muita aventura e apenas a comida suficiente?...


CAIO
Calma! São perguntas a que não posso responder de imediato. Só perante as circunstâncias é que me poderei comprometer.

HUGO
Tu não estás a compreender nada, pai! Todas aquelas perguntas foram para ver se ainda sabes o que é a magia da infância. Parece que só sabes o que é a responsabilidade de adulto.

CAIO
(Apanhado desprevenido)
Filho…

HUGO
Eu quero poder correr em campo aberto
(A sala fica mais clara. Hugo eleva um pouco o tom de voz.)
Agora ouve. Já não tenho muito tempo para usufruir desta sabedoria primordial do paraíso em que me encontro. Eu não quero nascer para ser apenas um funcionário com emprego e horário a partir dos quatro meses, ir às consultas do pediatra, levar as vacinas, ter peso controlado… Nem vou dizer mais nada. Tu sabes isso tudo de cor. Eu quero poder correr em campo aberto e não só em campos desportivos, eu quero poder trepar a árvores verdadeiras e não só fazer rappel controlado, eu quero poder sujar-me, mesmo que depois resmungue com a esfregação que me derem na banheira. Pai…

CAIO
(Tenta falar, mas o insólito da situação paralisa-o. Mantém-se no domínio da racionalidade e balbucia uma frase.)
Eu é que tenho de ensinar o meu filho a falar.

HUGO
(Cada vez com mais convicção.)
Isso é para depois. Pai, não te esqueças de me ajudares a conhecer-me. Vai-me mostrando os traços mais fortes da minha personalidade. Sentir-me-ei mais seguro. Mas também preciso de conhecer os meus medos. Pai, eles serão reais e, enquanto durarem, não os desvalorizes. Eu quero ser um adulto seguro para poder dormir tranquilo.

CAIO
(Reagindo à conversa do filho que não entendia.)
Possivelmente saberás que me esclareço, leio os melhores autores de referência…

HUGO
(Interrompendo)
Eu sei, eu sei. Mas tu é que és o meu pai, não os autores que lês sobre a educação das crianças. E não te podes esquecer que o diálogo é bom, mas o teu exemplo é indispensável: és viciado em televisão, não arrumas a tua roupa, não sabes dizer não com firmeza e carinho quando sais com os meus primos, mentes ao telemóvel quando não te apetece falar com um amigo… Tens de me dar o exemplo, ajudares-me a distinguir o certo do errado e não me deixares confuso com o que fazes e o que dizes.

CAIO
(Reagindo novamente.)
Tranquiliza-te, filho. É um momento único e tens de te concentrar no que te vai acontecer…

HUGO
(Com plena convicção.)
Lê-me e conta-me histórias...
Como te enganas. Desse momento trata a Natureza e os homens que também já aprenderam alguma coisa. O que me importa agora é falar contigo. É a nossa grande e única oportunidade. Olha, não me desafies para vermos filmes juntos. Não quero partilhar contigo momentos da minha vida em que estejamos cada um em sua gaiola, fingindo que estamos a partilhar alguma coisa. Vê os teus filmes quando eu estiver a dormir. A palavra falada e lida é muito mais importante. Lê-me e conta-me histórias desde os primeiros meses. Quando for para adormecer, não quero histórias novas nem grandes: depois bulham com o sono e durmo mal.


(Pausa, como quem sente um incómodo.)
Voltando à palavra lida e falada… Pai, fala muito comigo de assuntos muito variados, do mundo, de sentimentos, conta-me histórias da família, mostra-me fotografias, fala-me das tuas viagens, faz-me pôr questões. Mas não te esqueças que tens de ter muita paciência para fazeres de mim um leitor. Sem saber conversar e sem o hábito da leitura, como serei um homem que saiba pensar? Pai, se eu não aprender a pensar, vou ser um consumidor de televisão, de jogos, talvez frequentar um ginásio e trabalhar… Pai, a palavra é a verdadeira dimensão da humanidade!

CAIO
(Tomando consciência da seriedade e importância daquela conversa.)
Eu começo a entender-te, filho. Os livros que já li e os que lerei não podem ser leis irrevogáveis face às realidades que viermos a enfrentar. Tudo tem de ser temperado com bom senso, afetividade e espírito de família.
(Respira fundo, olha para a mulher e passa a mão pela cabeça, como quem se prepara para ser convincente.)
Por sermos uma família, filho, eu e a tua mãe também temos de nos harmonizar nesse espaço com a nossa vida própria. Podemos não contar ou ler uma história por não termos qualquer disposição nesse dia, podemos querer ter um fim de semana só para nós, sem termos de arranjar pretextos de trabalho, podemos querer simplesmente preguiçar ou visitar um amigo sem termos propriamente de te pedir autorização.
(Parou, com algum receio, e esperou a reação do filho.)

HUGO
(A alegria que transparece pelo tom de voz de Hugo é momentaneamente abafada por um gemido mais intenso.)
Claro, pai. Tens toda a razão. Para além de me dares muito colo e de me ires defendendo enquanto não for completamento autónomo, temos de formar uma família com boas regras
O mais importante é seres um pai feliz.
para todos e estáveis. Assim, eu aprenderei a dizer obrigada, porque tu também me vais dizer, aprenderei a reagir de imediato a solicitações tuas, porque as vais transmitir com convicção e não te vais distrair, vou aprender a cumprir os trabalhos de arrumação que me destinares em casa, porque não vai haver televisão aberta para ninguém, durante boa parte do tempo que estivermos em casa. Só nas horas estipuladas.
(Hugo muda o rumo à conversa e fala num tom mais rápido.)
(Caio também dá sinais de ter urgência em falar.)
Esta conversa só poderá ser reatada, possivelmente, quando eu for um adulto e tu estiveres prestes a seres avô. No entanto, tu vais ter sempre, embora um pouco esbatidas, memórias desta nossa conversa. Estou quase a olhar-te nos olhos e a ficar a tua criança de quem vais cuidar com muito colo, carinho e alegria de seres pai. Olha, pai, não te preocupes se algumas vezes não fores sempre certinho. É sinal de que és humano. O mais importante é seres um pai feliz e não um pai que mostra esforçar-se por ser um bom pai. Não é preciso parecer, é indispensável ser.

CAIO
Olha, filho, tenho estado a ouvir-te com atenção, mas também a pensar que não compreendo o motivo de não falares para a tua mãe ou te dirigires aos dois.

HUGO
(Com uma voz ainda mais apressada.)
Um dia vais compreender o motivo de eu não me dirigir a Gaia…

CAIO
Entendeste mal. A tua mãe é Guida, não é Gaia…

HUGO

Eu sei, mas para mim é Gaia. Um dia vai ser verdadeiramente a minha mãe e vou amá-la sempre. Até já, pai. Escuta, vou nascer e quero ser feliz!

Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. Como que por magia, o filho, que ainda não se conhece, estabelece com o pai um diálogo de exigência, onde os papéis aparecem invertidos: ouvimos o filho a organizar a sua existência e a da sua família. É um diálogo entre um filho e um pai, que ainda o não é, e em que a mãe surge com um papel premeditadamente secundário. Percebemos que o filho não quer viver as situações que o filme Kramer contra Kramer tão bem soube retratar. E a dúvida instala-se: será possível a vida que o Hugo deseja ou caminhamos, a passos de gigante, para uma sociedade em que o diálogo deixará de existir na sua forma mais pura? Teremos espaço para ler uma história, andar de gatas ou simplesmente olhar o céu, deitados na relva? Ou teremos apenas espaços, momentos compartimentados, para crescer com os nossos filhos, no intervalo de duas tarefas a realizar?
    Em cena está apenas um pai, meio perdido, que quer ser pai e quer ser família: boa sorte, pai!

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  2. Um diálogo para ser lido (e refletido) por todos os que encaram seriamente o papel dum pai.

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  3. "Pai, a palavra é a verdadeira dimensão da humanidade!
    ... O mais importante é seres um pai feliz...
    ... Escuta, vou nascer e quero ser feliz!"
    Com estes extratos a publicitar "Pai, ouve-me!" não tenho a menor dúvida que agendaria de imediato ir deliciar-me com esta peça.
    Se a autora não me levar a mal, sugeria um brevíssimo 2º ato.
    (Com grande atrapalhação, carregado de sacos e embrulhos entra o pai muito preocupado porque o transito o atrasou)
    Pai - Ó querida, desculpa a demora...mas...
    Guida - Tem calma, não faças barulho, o bébé está a dormir. Mas o que é que tu andaste a fazer? Tanta coisa, és um tolinho!
    Pai - Estás bem? E o menino esteve sossegadinho?
    Guida - Sim está felizmente tudo a correr muito bem. Só tens é que te preparar para responder ao Hugo.
    Pai - Então porquê?
    Guida - Após teres saído disse: Gaia (apontando para a minha barriga) eu estava aí tão bem! Qual foi a ideia de sair, quem quis que fosse assim?
    Ah! O pai já se pirou... Saberá ele como é que eu fui parar à tua barriga
    Gaia? Como cheguei aí? Vão ter que me explicar. Agora vou dormir um bocadinho.

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    Respostas
    1. Obrigada, José Luís, pela sugestão! É que as crianças são mesmo assim, mas depois reduzem-se ao silêncio quando não têm interlocutores.
      Impõe-se um equilíbrio entre a dimensão humana e a dimensão tecnológica do mundo atual!!!

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