segunda-feira, 16 de junho de 2014

Fui ver nascer o Sol

Fui ver nascer o Sol. Tinha decidido: amanhã vou observar o nascer do sol. E ainda as árvores do meu jardim se espreguiçavam no lânguido e pesado escuro, já eu, sorrateiro, me esgueirava pela artesanal porta do quintal. Queria, por inteiro e com todo o detalhe, presenciar o aparecimento do sol, entre a penedia das fráguas, o primeiro contacto da sua luz com a cortina verde dos freixos e amieiros adjacentes às águas do rio e ver a calculada reacção da seara verde das espigas, que ondulavam na ladeira do velho monte. 
Fui ver o nascer do sol.
Antes que a familiar escuridão desse qualquer sinal de se dissipar, assaltou-me uma inconsciente apreensão do que sucederia se o sol não viesse, por se ter enganado no seu percurso, por capricho da sua natureza, por se ter enredado e entretido em amores com alguma estrela jovem, que as deve haver lindas, - fruto das últimas explosões dos buracos negros! – ou, quiçá, por se propor assustar o seu sistema solar, nomeadamente a Terra ou qualquer outro planeta mais reguila ou mais distraído. Mas a razão respondia à minha apreensão imaginária, afirmando-me com o argumento da ostensiva tradição, que, sem GPS, o astro rei, embora já com alguns truques, no seu “curriculum vitae”,- a fazer acreditar milagres, por determinismo ou ordem superior,- sempre foi fiel na sua rota, e, por isso, aceitava que a sua constância na pontualidade virá a ser por muitos milhões de séculos até se tornar insolvente de combustível, e obrigado a desaparecer por inacção ou esgotamento ou a fundir-se em ritos de magia e de esplendorosa luz. Na minha natural limitação cheguei ao cimo da enrugada e velha encosta em menos de meia hora, com passo bem meditado, e por ali fiquei, entre o contemplativo e o ansioso, a aguardar qualquer sinal anunciador da primeira réstia de luz, que testemunhasse a aproximação da força, do poder, e do fausto, do grande astro solar. 
...odor de plantas bravas
A expectativa envolveu-me, em afagos de um perfumado odor de plantas bravas, adoçando-me a derme com anunciados elementos que me pareceram de messiânica novidade de que algo ia acontecer. Ouvi com apreensão, o quebrar do silêncio ainda meio adormecido, o contínuo e manso ressonar do rio, a afirmar e a lembrar, no fundo do vale, a sua presença, com a água, que se adivinhava, a esgueirar-se do açude pela garganta das grandes pedras ali expostas pelas razões da natureza, seguindo o caminho rasgado e ajustado, nos tempos idos, pela tenaz força do caudal. A lua sorrateira já se havia recolhido no seu quarto minguante, vestida de mistérios de penumbra, cumprido o percurso, sem ter deixado qualquer mensagem meteorológica digna de apontamento. Algumas casas da aldeia com fumos enrolados a sair das chaminés, davam sinais de que alguém havia abandonado o aconchego do leito para se fazer ao dia, rente a chegar. A penumbra atenuou a sua densidade em jeito
de compromisso de despedida. Senti ainda o esvoaçar de um pombo, a perseguir um outro que com ousadia se abeirara do ninho da sua companheira, aconchegada longamente ao longo da noite. E num ai, a natureza, já aclarada, rasgou-se em gigantesca janela, expondo a ponta de uma espada de vivo escarlate, como ponta de ferro incandescente retirado do núcleo da forja de ferraria, para projectar um jacto de luz. Num ápice, num clic, se fez dia com o sol a exibir-se ao mundo, com majestade, senhor do seu reino, reabrindo as portas da sua moradia. A aparição do sol, tão sôfrego a acarinhar a sua noiva Terra, nela depondo o ósculo da promessa de transmissão de vida, era a prova demonstrada de que os astros, no seu esplendor, também têm intimidades, reacções e sentimentos. 
O sol mostrava-se feliz pela viva alegria com que a natureza o recebeu e despertou em festa,
...o chilreio da estouvada passarada
correspondendo ao estímulo da vigorosa luz anunciada. Era o reencontro de dois entes, condenados a cumprir astrologicamente o seu destino de harmoniosa e universal beleza até que o tempo, em felicidade comum, os esgote de seiva e luz. Sentia-se, então, o cheiro resinoso corrente dos pinheiros da colina, a tocarem-se reciprocamente, com a brisa do festivo alvorecer. Ouviu-se ainda o chilreio da estouvada passarada, a competir, com cabriolices, no voo picado, a caminho do banho ora tangente ora secante na água mansa do rio. Viu-se o sorriso do sol, a soerguer-se decidido, em colorida luz e altiva solenidade, atrás da crista aguçada das pedras que se erguiam na outra margem do rio e que protege a aldeia da brisa matinal. O sol envolveu-me e beijava-me a face com o carinho de um sentido agradecimento por me alegrar em testemunhar o reino da sua glória, de silenciosa e benfazeja luz. E com a alegria recebida, decidi ir mergulhá-la na água do grande açude, para surpresa do ainda ensonado Côa.

José Carreto Lages ©2014,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Um nascimento do sol belo, como sempre o é, descrito com palavras simples, denunciando algumas as origens beirãs do autor. Sem ser um rico texto de termos sofisticados, é antes um texto rico porque muito bem escrito.

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  2. Formas, odores, afagos da pele, chilreios, luz e cor, tudo se concatena numa sinestesia perfeita que é a alvorada cada dia renovada!

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  3. O poeta descreve, em palavras, o que os olhos veem sentindo e, nesta mescla de letras/imagens, deparamo-nos com a beleza, sem limites, dum nascer do sol.

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