domingo, 29 de junho de 2014

A última corrida

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de trabalhos sob o tema  Mensagem paralela à de um filme. Para mais facilmente compreendermos de que filme se trata apresentaremos previamente a Sinopse e o seu original título.

                                                                  A MILLION DOLLAR BABY - Sinopse

Afastado da sua filha, Frankie (Clint Eastwood) revela uma grande dificuldade na aproximação aos outros, e apenas lhe resta o amigo Scrap (Morgan Freeman), um ex-lutador de boxe que cuida do ginásio de Frankie. É então que entra em cena, em seu ginásio, Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), que sempre teve pouco da vida, mas que ao contrário de muitos, sabe bem o que quer e tem a determinação necessária para o alcançar. O ambos não sabem é que terão de enfrentar um desafio que irá exigir mais coragem e alma do que podem imaginar...                                                                    

A última corrida

“Estava-lhe no sangue”— diziam muitos dos que todos os dias a viam passar naquele passo determinado e convincente de que aquela vontade ainda haveria de mover montanhas. Fizesse chuva,  fizesse  sol  ou  o  vento  fosse  de  norte  ou  de  onde quer que viesse, aquela
Gostava de correr.
menina franzina fazia-se à estrada ou a qualquer caminho seco ou lamacento, sempre de olhar lúcido mas com um brilhozinho, bem lá no fundo, daqueles olhos crentes no seu esforço e dedicação. Desde bastante pequena que gostava de correr e cedo começou a fazê-lo só porque os outros não lhe igualavam a passada e ela não conseguia prescindir de satisfazer aquela vontade que lhe vinha lá de dentro. A pouco e pouco e, apesar dos parcos recursos de que dispunha, foi adquirindo uma autoestima que a compensava da deficiente alimentação e das condições de bastante pobreza em que vivia com a sua família. Os recursos que não existiam eram substituídos por uma força de vontade fora do normal.
Um dia, numa associação recreativa, lá da freguesia, assistiu à projeção de um DVD sobre a grande campeã olímpica e mundial Rosa Mota. Ela ficou maravilhada, ficou emocionada, ficou contente, ficou louca, ela ficou completamente cismada em todos os pormenores daquele filme. Nos dias que se seguiram corria, corria e as imagens, umas atrás das outras, eram as da Rosa Mota? Eram suas? O sonho passou a fazer parte da sua vida e a intermitência vivida entre ele e as condições reais da sua vida começaram a despertar nela uma lucidez até agora não sentida. Como poderia ela pintar um quadro sem tela, sem pincéis, sem tintas...
Correr podia fazê-lo em qualquer lado
A família nada tinha e a luta pela sobrevivência era já fado suficiente. Tinha que ir para a cidade e lá arranjaria trabalho para poder subsistir. Correr, podia fazê-lo em qualquer lado, precisava era de descobrir quem a ajudasse.
Um saco pequeno, pouco havia para levar, acompanhou-a na aventura de quem tudo quer mas nada tem, ou melhor, para quem sonhar se tornou num direito só porque a sua enorme vontade lhe sustentava o nada que tinha.
Passaram-se dez meses e a Helena, Lena, para os amigos e familiares, começava, finalmente, a percorrer os caminhos da vida assente numa estabilidade periclitante que ela equilibrava com a sua poderosa força de vontade. Ela tinha um sonho, correr com técnica, com saber, segundo as regras que uma campeã tem que aplicar. Para o conseguir, tinha que ultrapassar muitas carências com a sua persistência e querer. De trabalho precário em trabalho precário ia conseguindo um mínimo que lhe permitia viver num quarto partilhado com uma rapariga que como ela angariava o sustento do dia a dia. Inscrevera-se num clube de atletismo e usufruía de orientação técnica que muito estava a contribuir para melhorar as suas performances.
Certo dia, mal entrou no clube, foi avisada de que o Professor Mendes tinha muita urgência em falar com ela. Era o técnico mais velho e, talvez, não só por isso, mas por ter fama de ser a pessoa mais competente daquela coletividade, deixou a Helena muito perplexa sem perceber se deveria ficar contente ou se pelo contrário se poderia tratar de algum mal entendido que a pudesse vir a prejudicar. Quase que a tremelicar subiu as escadas que a conduziriam ao gabinete do senhor Mendes.
Há muito tempo que aquela atleta andava a ser observada. Ela dava nas vistas pela determinação e rigor que impunha a si mesma e frequentemente os técnicos comentavam entre si que aquela miúda tinha características que a podiam conduzir a uma carreira interessante. Conhecedor e observador atento, o Prof. Mendes tornou-se, em silêncio e muito discretamente, num fã daquela atleta que lhe trouxe à memória Helenas doutros tempos. Ele vivia intensamente as venturas e desventuras destes jovens que através do desporto lutavam intensamente por um futuro melhor.
— Posso entrar Sr. Professor? — solicitou Helena com uma voz tímida que quase se não fazia ouvir.
—  Entra, estava à tua espera. Necessito ter uma conversa contigo.
Que me dizes, concordas?
— Mas… Sr. Professor, há algum problema? Eu fiz alguma coisa mal?
Com um sorriso apaziguador o Professor Mendes perguntou-lhe:
—   Helena, que idade tens tu?
— Tenho 17 anos, faço os dezoito daqui a quatro meses.
E o Professor continuou:
— Gostas muito do que aqui fazes no clube?
— Adoro Sr. Professor. O que mais quero é trabalhar muito para conseguir diminuir os meus tempos.
Aquele rosto, aqueles olhos falavam com tal expressão que o velho Professor Mendes acabava de tomar uma resolução, se bem que técnica, com muita mistura de empenhamento pessoal. Acompanhou muitos atletas ao longo da sua vida e agora que julgava já ser capaz de não se comprometer tanto com os outros, haveria da aparecer esta rapariga tão simples, tão débil mas com uma tendência, jeito e acima de tudo uma forte determinação que o predispunham para fazer por ela o máximo que pudesse. Era então chegada a hora das decisões e o Professor Mendes disse perentoriamente:
— Quero acompanhar o teu trabalho, quero ser o teu técnico que de ti muito exigirá com a firme intenção de fazermos um trabalho de equipa profícuo, quero, enfim, ser o teu treinador. Que me dizes, concordas?
Helena esperava por tudo menos por o verdadeiro euro milhões que lhe acabava de ser servido por um extraordinário treinador que qualquer atleta desejaria. O seu rosto ria, chorava, chorava e ria e aquelas lágrimas caiam-lhe transportando a carga do agradecimento, da humildade e do reconhecimento por tamanha dádiva. Ouvia-se um, mal percebido, o…bri…ga…da  entalado em tanta emoção.
O experiente Professor, pessoa de sensibilidade rara, disfarçando a emoção com um ar determinado, levantou-se e aproximando-se dela ditou-lhe a primeira regra:
— Vamos ser uma equipa e uma equipa só o é quando existe transparência, lealdade e se criam laços de amizade. Conto contigo, Helena, tu mereces. Juntos vamos conseguir.
Uma página enorme do tamanho de um grande livro se tinha virado na vida daquela rapariga simples que acabou por granjear o respeito e a admiração de quantos a observavam na sua luta diária. Passou a ter um treino planificado de acordo com as suas características, orientado por quem muitíssimo sabia. Não eram fáceis os dias. O treino era duro. Por vezes, surgiam acidentes de percurso, lesões, problemas no trabalho, as saudades de uma casa cheia de nada onde a mãe continuaria a inventar comer para dar aos irmãos. A sua vontade de vencer imprimia-lhe aquela força que vinha lá de dentro e sorria com uma alegria contagiante sempre que o seu treinador lhe transmitia evolução no seu desempenho.
Passou-se um ano e o treinador achava ter chegado a altura para começar a testá-la em competição. Seria uma prova de 10.000 metros em que iria competir com atletas de qualidade comprovada e estava mentalizada pelo seu treinador de que o principal não era chegar em primeiro, mas antes pôr em prática noções que lhe foram transmitidas pelo mestre.
Vai Lena, a vitória é tua.
Fez uma prova extraordinária e insegura nos últimos 1000 metros porque parecia não saber qual a atitude a tomar, transformou-se em verdadeira flecha quando ouviu o grito do treinador:
— Vai Lena, vai Lena, a vitória é tua.
A emoção era muita para ser contida. Treinador e atleta abraçavam-se, beijavam-se como se se tratasse de pai e filha. O velho Professor Mendes tinha a certeza de que aquela menina iria longe. Já há muito lhe chamava “a minha Menina de Ouro” e foi com deslumbramento que treinador, atleta e todo o clube viram, no dia seguinte, que todos os jornais lhe dedicavam grandes espaços, primeiras páginas ou destaques próprios para grandes campeões. As rádios e as televisões não paravam de falar no lançamento da Menina de Ouro do Professor Mendes.
Tinham sido largamente superadas as expectativas do treinador. A partir dali nada voltaria a ser como dantes. A Lena tinha atingido a rampa de lançamento das grandes estrelas. Seguiram-se muitas provas sabiamente selecionadas pelo treinador que revelava a sua extraordinária capacidade, não só na preparação da atleta mas também na gestão da sua carreira. As vitórias e os lugares de pódio seguiam-se umas a seguir às outras. Lena era agora uma rapariga realizada e embora empolgada pelos seus êxitos continuava com a humildade que a caracterizava a treinar com a determinação e rigor próprios das grandes campeãs.
A vida mudara. Estava a ganhar muito dinheiro e naturalmente que vivia agora como nunca sonhou, não lhe faltando nada. Mal pode deslocou-se à sua terra onde tinha deixado mãe e irmãos. Comprou-lhes uma boa casa e fez questão de os vestir com roupas como as outras pessoas tinham. Regressou ao seu trabalho feliz por ter partilhado com os seus o resultado do seu sonho.
Cada vez mais se afirmava uma maratonista de grande talento e os êxitos pareciam não ter fim. A dupla treinador/atleta gozava de enorme prestígio e mantinham genuinamente os mesmos princípios de transparência, de lealdade e duma grande amizade partilhada com o rigor do treino e com as alegrias das vitórias.
Naquele dia o treinador sentia algo estranho, muito estranho. A Lena estava já muito atrasada, coisa que não havia memória de alguma vez ter acontecido. Ligou-lhe para o telemóvel e este chamava mas do outro lado ninguém atendia. O que estaria a acontecer?
Recebeu mais tarde o dramático telefonema de um hospital. A campeã tinha lá dado entrada e estava na sala de operações correndo perigo de vida. Uma ultrapassagem mal calculada por alguém originou um embate frontal de duas viaturas deixando Helena muito mal tratada. A ansiedade de todos — muitos — que esperavam por notícias foi aumentando ao longo das seis dolorosas horas que permaneceu na sala de operações a tentar desta vez chegar, ao menos, ao corte da meta. Chegou, mas as notícias não podiam ser piores, a Menina de Ouro não poderia mais galvanizar todos os que a admiravam e aplaudiam. As lesões graves na coluna vertebral, impiedosamente, remetiam-na para uma cama de hospital onde poderia aguardar ténues esperanças de não ficar paraplégica.
Na rádio e televisão a notícia passou a ocupar por inteiro o tempo de emissão — A Menina de Ouro não voltaria a fazer transbordar de alegria e emoção os seus numerosos admiradores. Nas imediações do hospital, no clube, nas pastelarias, nas ruas, as pessoas choravam em silêncio. As palmas de alegria incontida eram agora substituídas por lágrimas tristes e de saudade.
Numa sala de espera do hospital sentado numa cadeira, um homem só, envolvido
O sonho da Menina de Ouro
por
 imensa tristeza, lutava consigo mesmo para encontrar a melhor resolução para caso tão complicado. A emoção atraiçoava-lhe o raciocínio e, ora sentado, ora de pé, passeando-se freneticamente de um lado para o outro, tentava esboçar um plano que pudesse dar continuidade àquele sonho da sua Menina de Ouro. Não conseguia sair dali. Tinha que ver a sua menina, agora nos cuidados intensivos depois de uma operação muito delicada. Passou ali a noite como se fosse um pai à espera do nascimento de uma filha que, à partida, já sabia vir ao mundo com uma deficiência grave. Era assim o Professor Mendes, um técnico muito competente mas com estratégias de treino e de acompanhamento alicerçadas numa sólida formação humana. Um homem que torcia pelos seus atletas sendo a solidariedade a sua bandeira. Um homem bom.
O reencontro da equipa, agora impedida de o ser, foi dramático. O velho Professor, que tanto tinha ensaiado mais um treino de forte componente psicológica, não resistiu à emoção desmedida da campeã. Muitas vezes partilharam o choro da alegria, agora substituído pelo desânimo, pela amargura, pela desilusão. A conversa foi muito profunda sem sequer terem dito uma única palavra.

A última corrida
Às primeiras horas da manhã, logo que os regulamentos o permitiam, ali estava todos os dias aquele treinador a puxar e a incentivar a sua atleta. Havia de haver médicos, novos métodos, outro hospital, qualquer outro caminho que alterasse aquele macabro diagnóstico. Os dias sucediam-se, mudança de hospital, novos médicos, novas tentativas e a esperança desfalecia… A família cedo a esqueceu, abandonando-a. A fonte do dinheiro tinha secado. Só, o treinador era perturbado pelo escorrer das lágrimas silenciosas daquela atleta numa enorme dor e solidão. O aperto afetuoso das mãos e o beijinho carinhoso na testa daquele seu grande amigo era agora o oxigénio respirado por aquela paciente sadicamente lúcida. À revolta e extrema dedicação do treinador solicitava agora a atleta ajuda, a última, para a última corrida. Uma pessoa que esqueceu qualquer tipo de vida pessoal, passando a dedicar-se por inteiro à enferma e à sua enfermidade, que julgava estar a passar pelo pior que poderia viver, descobria, possivelmente, o mais horrível da vida: acabar com ela. Pôr fim à vida de um ser extraordinário que de um momento para o outro passou a ser como um vulgar vegetal. Pior ainda, um vegetal que tinha a capacidade de lucidamente pensar, só pensar…
Foram dias e noites horrendas. Voz e olhos de Lena imploravam uma forma suprema de amor. A inquietação, a surpresa, a revolta do velho Professor Mendes ditavam-lhe a óbvia falta de coragem. No mais íntimo de si instalou-se o mais perturbante desafio, castrador de decisão fácil e com a certeza de que não mais teria sossego na vida que lhe restava.
— Adeus minha querida Menina de Ouro.
— Levo-o no coração, meu grande amigo.
O amor ultrapassou a falta de coragem, não para cortar vitoriosamente mais uma meta mas, desta vez, para pôr termo à dor profunda de um ser que só desejava e pedia para partir.

José Luís Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Quase tão duras como a vida, são as palavras que ficaram pegadas a mim: morte assistida, eutanásia... Desde sempre esta foi praticada. Historicamente, desde a Antiguidade, houve sociedades em que a eutanásia estava institucionalizada.
    Sobre este tema, as pessoas costumam entrincheirarem-se e cada uma fica com as suas convicções.
    O amor venceu a falta de coragem...
    Impõe-se um diálogo aberto, sereno e esclarecedor sobre este assunto!

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  2. Este é um trabalho que poderia e deveria despoletar o confronto de ideias sobre um tema que quase receamos abordar. Realmente, às vezes, a vida prega-nos partidas demasiado dolorosas que nos deixam sem palavras e sem vontade de continuar em frente. E, quando viver passa a ser um suplício, nenhum de nós deve ter o direito de julgar quem quer ser ajudado a morrer. Recordo o caso de Ramon Sampedro, um espanhol que ficou tetraplégico desde os 26 anos e que reclamou morrer dignamente. O termo eutanásia vem do grego e pode significar “boa morte” ou “morte apropriada”. Este trabalho, sem ideias feitas, permite-nos refletir sobre a vida e o seu caminho e sobre o fim da vida que queremos seja digno e sereno.

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  3. Obrigado pelos vossos comentários, Fernanda e Albertina. Como quase todos os filmes de Clint Eastwood, A million dollar baby aborda profundamente valores e problemas sociais tendo optado por o terminar com o desafio do desassossego à sociedade cínica e hipócrita que tenta alimentar ideias sempre subjugadas aos tabus mais convenientes para uns quantos interesses. Escrever é uma forma de introspecção, mesmo quando se não é um bom escritor.

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