Histórias Tradicionais
Hoje
damos início à publicação de textos elaborados a partir da
RECRIAÇÃO
de NARRATIVAS TRADICIONAIS.
Colabore
e remeta-nos o seu texto recriado para publicação. Ouse! A polifonia rasga
horizontes.
Histórias Tradicionais
Histórias Tradicionais
Conceição Cação
A seus pés, as casas iam
ficando cada vez mais pequenas, as estradas e rios eram agora simples linhas a
separar aqueles aglomerados urbanos e até a Mesquita de Al-Aqsa, de cúpula
dourada, ia abdicando da sua imponência. Visto assim, de cima, todo aquele território
se assemelhava a um puzzle colossal que
um gigante com alma de menino tivesse acabado de encaixar. Nem sinais de
guerra, nem vestígios de ódio.
O avião rasgava agora aquele
imenso mar de algodão, generosamente iluminado pelos raios de sol, que
refulgiam no metálico das asas.
Porquê esta viagem a Portugal? |
− Já vos sigo há tanto
tempo, Mestre, e não parais de me surpreender. Porquê esta viagem a Portugal?
E Cristo pensou no carinho
que sempre dedicou a este povo, desde os primórdios da nacionalidade. O próprio
D. Afonso Henriques tinha beneficiado do seu auxílio, em forma de aprovação e encorajamento,
ao aparecer-lhe antes da batalha de Ourique. Outros tempos! Não, não podia
abandoná-lo assim neste momento crucial da sua história.
− Já tentei ajudá-los de
várias formas, até enviei uma legião de anjos e nada.
− Mas… têm lá a troika.
− Com perdão de Meu Pai, que se lixe a troika!
− Já ouvi falar do Gaspar.
Ele é um dos que, em Belém, vos ofereceram…
− Não, homem, esse Gaspar é
outro. Não ofereceu nada, só tirou. Quando teve a pasta das finanças, eram só
cortes e mais cortes… Já se demitiu. Demorou mais dum ano para perceber que
estava errado…
− E o de Santa Comba?
Lembrai-vos que tendes o poder de ressuscitar os mortos.
− Vade retro, Satanás. Quereis que o povo volte a ter 40 anos de
ditadura?
− Não, Mestre. Mas dizem que
foi um bom ministro das finanças…
− Nem pensar! O homem já
expiou a sua culpa no purgatório por ter sido um ditador. Incumbi-lo de
equilibrar aquelas finanças, equivaleria ao inferno. Não pode ser condenado
duas vezes pelo mesmo crime.
− Estamos quase a chegar.
Ainda bem. Estou cheio de fome. Estas companhias de low cost…
− Que queres, Pedro? O nosso
orçamento não dá para mais.
− Mas não poderiam, pelo
menos, oferecer-nos um voo em económica na TAP?
− Vê-se que não conheces
aqueles políticos. São uns ingratos. Lembras-te dos esforços que eu fiz para
conseguir que a TAP não fosse vendida àquele russo colombiano brasileiro?
Nunca usastes tanto as redes sociais |
− Se lembro, Senhor!
Movestes Céus e Terra: recorrestes a todos os vossos contactos; mobilizastes
todas as influências; foram mensagens, apelos… Nunca usastes tanto as redes
sociais.
− É verdade, Pedro. E olha
que deles não tive nem um like.
− Mas… Vamos aterrar na
Portela?!
− Claro, em Alcochete jamais!
Senhor, iria jurar que vos vi ali a sair por aquela porta |
Aeroporto movimentado. Muitos
jovens que partem. Nos olhos as lágrimas, no coração a esperança de encontrar
noutro país a oportunidade que, na sua pátria, lhes é negada. Jesus
contempla-os, comovido.
− Pedro, que fazes aí com um
ar tão espantado?
− Senhor, iria jurar que vos
vi ali a sair por aquela porta. Será que a fome me está a provocar alucinações?
− Não, homem! É o Diogo
Morgado, está a regressar de Los Angeles.
Largo de Camões. Transeuntes, cabisbaixos,
absortos nas suas crescentes preocupações. O cosmopolitismo do local favorece o
anonimato dos dois homens. Porém, de entre a multidão, alguns cidadãos vêm ao
seu encontro.
− Senhor, fazei que eu veja.
− Senhor, fazei que eu ouça.
− Senhor, fazei que eu ande.
− Senhor, fazei que o meu
discurso ocorra no momento certo e sem gafes.
A todos o Divino Mestre
concedeu a cura.
− Mestre, tantos milagres e
nem sequer cobrastes uma taxa moderadora?!
− São todos isentos, Pedro.
− Como assim?
− O cego é beneficiário do
RSI; o surdo é desempregado de longa duração; o paralítico é um funcionário
público em regime de mobilidade especial…
− E aquele de fato e
gravata?
− Esse é o Presidente da
República. Só recebe 12.000 euros de pensão de reforma…
Chegam ao Parlamento. Faz-se
um profundo silêncio nas bancadas. Os deputados param de vociferar e fixam,
atónitos, aqueles dois visitantes. O rosto do mais jovem irradia bondade, mas
também autoridade, inteligência e mistério.
− Não acredito nos meus
olhos! Aquelas barbas, o cabelo… Karl
Marx em versão jovem?
− O Che sem boina? Será
outro milagre de Hugo Chávez?
− D. Afonso Henriques sem a
espada?
− D. Nuno Álvares Pereira?
− D. Sebastião deixou
crescer o cabelo?
− Sim, é isso mesmo! O
arauto do quinto império!
− O quinto império! O quinto
império!
− Fantástico! Isso significa
que vamos ter mais crédito.
− Mais autoestradas, mais
portagens, mais PPP, mais…
− Mais reformas vitalícias,
mais carros topo de gama…
Numa voz grave e límpida, o
Divino Mestre dirige-se à assembleia:
− Bem-aventurados os mansos…
− Mansa era a tua tia!
− Bem-aventurados os pobres…
− Ele disse “os pobres”?! Ai
que ele é um representante do grande capital!
− Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça…
− O quê? Também ele está a
apontar o dedo ao nosso sistema de justiça?!
− Reacionário!
− Anarquista!
− Demagogo!
− Populista!
Enfrentando o histerismo
crescente, Jesus elevou a voz:
− Eu sou o caminho, a
verdade…
- Olha, a verdade! Nunca
vais fazer carreira na política, pá!
E cada vez mais irados:
− Fora!
− Rua!
− O parlamento unido jamais
será vencido!
E, em coro, desafinados,
começam a cantar Grândola Vila Morena.
− Pedro, apetece-me fazer
algo.
− Tomei a liberdade de
pensar nisso, Senhor.
E Pedro saca da mochila o
chicote com que Ele expulsara os vendilhões do Templo.
− Não, Pedro, pensando
melhor, eu não vou usar o chicote. São tantos os deputados… Vamos sair.
Creio na troika toda poderosa... |
A energia positiva deixada
atrás de si e a lufada de paz não as notaram os deputados que, ainda seriamente
perturbados, se apressam a restaurar o ambiente habitual do hemiciclo. Antes de
retomar os trabalhos, todos reafirmam as suas convicções:
− Creio na troika toda
poderosa…
− O Euro é o único Deus e
Angela Merkel a sua profetisa…
− S. Trotzky, rogai por nós.
− Santo Estaline…
Sentado na escada, com o
tablet no regaço, Jesus revê os dossiês do governo.
− Estou que nem posso. Se
não fosse a minha missão de porteiro, que me obriga a estar alerta, bem me
sabia agora uma soneca.
− Dorme, homem. A morte
também pode ter as suas intermitências. Mas, pelo sim, pelo não, passa-me aí o
comando.
(Uma hora mais tarde)
− Olha, Pedro, não há
diálogo possível com esta gente. Só pensam no défice, na austeridade, na troika…
Reféns da dívida, só querem obedecer ao memorando, aos credores…Parece-me que
estão a sofrer do síndroma de Bruxelas-Berlim?
− E isso é grave?
− Muito grave. Duas vezes mais
grave que o síndroma de Estocolmo.
− E se multiplicásseis os
euros?
− Não, Pedro, isso não
resolveria nada. Iam gastar tudo e depois ficavam à espera de outro milagre.
− Vamos por esse país fora.
O povo há de ouvir-nos. Vou inspirá-los para que encontrem uma solução.
Caminham agora por caminhos
poeirentos e azinhagas invadidas por cardos e silvas de picos em riste. S.
Pedro pensa, com saudade, na sua Galileia bem-amada. As sandálias rotas; os pés
feridos pelas pedras pontiagudas; os braços riscados por arranhões longos e
irregulares, parecem mapas retirados à pressa do Google Earth.
− Olhai aquele caminho,
Mestre. Tão largo, tão liso… Porque não vamos por lá?
− É uma autoestrada.
− Uma autoestrada sem
carros?! Ainda há pouco chegámos e já vi tantas coisas estranhas neste país −
pensou Pedro.
− Senhor, eu não aguento…
− Ai aguentas, aguentas! Se
os portugueses aguentam tanto, tu também aguentas.
A surgir por entre as urzes do valado, a ponta
dum cordel desbotado pelo sol.
− Olha, Pedro, um saco de
moedas.
− Moedas?!
− Sim, são os velhos escudos.
Apanha-o.
− Para quê, Senhor? Já não
valem nada.
− Lembras-te da ferradura?
− Se lembro, Mestre! Parece
que ainda sinto dores nas cruzes de me baixar tantas vezes para apanhar as
cerejas.
- Então, faz o que te digo.
S. Pedro obedece.
− Em verdade te digo, Pedro,
é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que Portugal
permanecer no Euro por muito tempo.
E lá seguiram o seu caminho
rumo ao Portugal profundo.
Um grande e expressivo fresco da atualidade portuguesa a que não falta humor para suavizar a tortura em que vivemos!
ResponderEliminarSão, deu-me prazer ler este texto e nós todos bem precisamos destes momentos!
Obrigada.
Ainda bem que gostou, Fernanda. Também me deu um prazer enorme escrevê-lo. Tem um efeito catártico.
EliminarUma recreação excelente dum conto tradicional. Realmente São, se Cristo cá voltasse, não lhe faltariam oportunidades para utilizar aquele chicote que o Pedro trazia, à cautela, na mochila. Só que o que eu não esperava era que nem ele quisesse fazer uso de uma medida que, nos seus tempos de "Mestre", usou contra tudo e contra todos. Realmente apetece-me comentar que nem aqui "a tradição já não é o que era"!
ResponderEliminarTambém eu, usando a caneta, vou distribuindo chicotadas.
EliminarUm texto excelente! A organização, o desenvolvimento,as personagens, os diálogos, foram meticulosamente pensados para que o resultado final saísse com o humor e a ironia necessários e a sátira apropriada a estes tempos de "passos troikianos". Espero que se utilize deste estilo mais vezes... Há sempre quem goste.
ResponderEliminarEis um retrato do nosso tão flagelado país, pintado com as cores da ironia, da sátira, do desencanto.
ResponderEliminarFoste exímia em saber pintar este triste quadro, as pinceladas não poderiam sair mais certeiras.
Lamento profundamente que os nossos políticos não saibam ou não queiram fazer uma análise honesta deste que já foi um belo país à beira mar plantado.
Obrigada São por este texto tão real
Dores... políticos a fazerem análises honestas? Onde? É como procurar uma agulha num palheiro...
EliminarA situação do país é uma fonte inesgotável de inspirição para as mais variadas criticas. E a São bem o mostrou aqui, dentro do estilo a que já nos habituou, um momento delicioso. Adorei este bocadinho. Obrigada São
ResponderEliminarQuem escreve assim, com este desenvolvimento e com esta descrição de tudo o que se passa no nosso país só merece parabéns. Gostei de ler este texto e embora atrasada aqui deixo o meu modesto comentário.
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