Virgínia
Rafael
A manhã despontou fria, mas cheia de um
sol apaziguador para qualquer alma inquieta.
O final do período movia-se com passadas de gigante. Dias, alguns dias
para amainar este bulício de adolescentes e jovens que me consomem as
entranhas. Eu – já com tantos ontens – permanentemente impelida a uma energia
sôfrega, frenética, como se tivesse sido anunciado o fim do mundo.
Sentia-me triste com a desgraça que batia
de frente nas nossas vidas - uma desgraça sem qualquer solução, sem
possibilidade de ser amainada por uma ténue réstia de esperança. O passado,
trampolim para sonhos futuros, vestia-se de morte.
O passado vestia-se de morte. |
Já na rua, poisava o olhar nos prédios
perfilados ainda de janelas cerradas – o que
está para além delas? -, sem que deixasse de sentir vontade de voltar
atrás, correr as persianas do meu quarto e enfiar-me na cama.
Quando estava mesmo a chegar, não
reconheci a escola. Toda a fachada estava coberta de placas metálicas –
trabalhadas ao estilo manuelino – que não deixavam ver nada para dentro. Apenas
uma porta permitia o acesso. Atónita e incrédula, lá me aproximei. O controle
era apertado. Uma figura robusta, de membros desconformes e sem cabeça fez-me
uma vénia com uma mão delicada e garantiu-me que eu ia ser feliz. Fui a última
a entrar. A porta fechou-se. Abateu-se sobre mim uma névoa de medo.
(As janelas cerradas – o que estará para
além delas?).
Chegada ao átrio, deram-me a mão com
ternura e disseram-me que, ali, a única realidade para viver, era o sonho.
E, de repente, pelas fendas do tempo
incerto nasceu maio, dia treze. O manto da Virgem escurecia. A tarde caía pelas
fachadas e o céu já não era azul. Baixinho balbuciei:
Nesta hora derradeira
morre-te o corpo na alma.
Nada faças.
Nada digas
Nada sintas.
Deixa desaguar a eternidade nas teias que te prendem.
Estende-se um pomar pelo teu corpo.
Um mar doce acerca-se das tuas mãos.
Baloiçam harpas penduradas nas tuas artérias.
É maio e o etéreo toca-te vagarosamente.
Já nada fazes.
Já nada dizes.
Já nada sentes.
Evo, só evo.
Porque agora
sem que se veja
Vive-te a alma no corpo.
Amaviosamente.
morre-te o corpo na alma.
Nada faças.
Nada digas
Nada sintas.
Deixa desaguar a eternidade nas teias que te prendem.
Estende-se um pomar pelo teu corpo.
Um mar doce acerca-se das tuas mãos.
Baloiçam harpas penduradas nas tuas artérias.
É maio e o etéreo toca-te vagarosamente.
Evo, só evo. |
Já nada fazes.
Já nada dizes.
Já nada sentes.
Evo, só evo.
Porque agora
sem que se veja
Vive-te a alma no corpo.
Amaviosamente.
E
do ventre de maio nasceu um dezembro triste e sombrio.
(As janelas cerradas – o que estará para
além delas?).
-
Anda! Não temas! Não foi em vão que caí, sozinha. Sonha comigo! Em Matemática
sonhar é ∞.
Em Matemática sonhar é... |
Então, vi romances de portas
escancaradas – numa estava Blimunda à procura de Baltasar -, matemáticos e
físicos a sair dos ecrãs dos computadores, escritores a discutir – lutas de ego
– com filósofos.
Dezembro,
dolorosamente, pariu fevereiro.
Lá
fora, o dia pálido e taciturno estatelava-se na calçada incerta do tempo e das
vidas - alfas e ómegas – que em passada incerta festejavam o dia de um
enamoramento, tantas vezes, infeliz.
Ora.
Hora. Sempre a hora.
A
figura robusta aninhava-se, com dores, junto a uma das placas metálicas. Os
meses eram chagas de um tempo crucificado.
Se
bastasse desejar ser amado. Se.
Num
sorriso largo, o poeta olhava a folha em branco – procurava as palavras.
Há
anos que lutava contra a hora. Uma hora dele valia três segundos. Tudo tentou.
Tudo sem nada. Coração deserto, mãos vazias, rosto suado. Foi assim aquela hora
de três segundos. Deu um beijo doce, brando, afável à vida - Até amanhã!-
correu expulsando-se de si mesmo e em forma de lebre veloz arremessou-se pela
janela. E quem viu… Viu. Corpo em queda com coração deserto e mãos vazias a
sobrevoar a calçada, a abraçar a hora. O poeta – alfa e ómega – estatelado no
passeio. Sem tempo. Sem.
Entoavam
as quatro estações de Vivaldi. Vivalma.
Cordeiro
imolado na periferia da hora. Também minha.
(As janelas cerradas – o que estará para
além delas?).
A figura robusta definhava lentamente. Ouvi-lhe
o último suspiro.
De fora, os meus filhos chamavam-me –
Mãe! Mãe! -, mas eu não podia regressar.
Estava sozinha. Alucinada?!
Continuamente a tristeza se estendia dentro de mim como um manto.
Cansada – porque sonhar dá cá um
trabalho! -, sentei-me no último
verso do poema Tabacaria, recostei a
cabeça no primeiro verso e, baixinho, solucei.
O sonho nada acrescentara à minha
miséria.
Evoluir congratula-se com a participação dum novo autor - Virgínia Rafael - que nos remeteu um texto em que aborda, de uma forma extremamente profunda, um tema que, de tão presente, nos é tão difícil de enfrentar. É por isso que sempre que alguém parte uma marca indelével permanece em cada um de nós. Obrigada, Virgínia, continuamos a contar com a sua participação.
ResponderEliminarAo ler este texto,tristes e longos pensamentos passaram diante dos meus olhos. Como eu senti essa tristeza infinda e que não mais acaba. Gostei muito de termos mais um colaborador. Obrigada.
ResponderEliminarO texto que a Virgínia nos enviou retrata-nos com uma extraordinária perfeição a dor da perda – e de perdas sucessivas – que de tão intensas se tornam parte íntegra de nós e se avolumam à medida que os dias vão passando – em contrário com o que realmente seria expectável.
ResponderEliminarA Virgínia fez um trabalho que lhe impôs um luto e ao partilhá-lo connosco – seus leitores – deu-nos a oportunidade de reflectir sobre conceitos tão profundos como a vida e a morte, a passagem e a imortalidade, o sonho e o infinito. Fundindo a prosa com a poesia criou um texto de rara beleza e de uma imensa profundidade. Obrigada Virginia, gostámos muito que se tenha juntado ao nosso grupo e vamos querer mais participações como esta.
É neste país que o ensino está em crise? Com professores tão profundos quanto Virgínia Rafael e outros. Outros e ela que trabalham, lutam, sofrem e alguns adquirem mesmo o direito a desistir... Como o horrível se pode tornar belo... "Deu um beijo doce, brando, afável à vida - Até amanhã!"
ResponderEliminarSerá que algum dia os "monstros" a vão entender?
Parabéns e visite-nos sempre.
Encarada como inexorável e próxima, a morte expande-se, antecipa-se, invadindo e profanando a vida com as suas sombras carregadas de angústia, de agonia, de sem-sentido...
ResponderEliminarÉ preciso abrir as portas e deixar entrar o "sol apaziguador" que continua a embalar o sonho.
Belo texto, Virgínia, obrigada!
Mesmo sonhando se constrói a vida, deambulando de alegoria em alegoria, na espectativa rítmica de controlar o impossível. Belo texto, num jogo perfumado de palavras de profundidade que perturbam os sentidos.
ResponderEliminarSenti o texto no inverso da sua corrente!
ResponderEliminarCom cansaço, só cansaço, a foz fez-se nascente!
De tão puro, não agradeço.
Virgínia, espero a hora de outro momento absoluto!