domingo, 8 de setembro de 2013

O meu futuro é a multiplicação das minhas memórias divididas pelas lágrimas que correram para a foz

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Virgínia Rafael

A manhã despontou fria, mas cheia de um sol apaziguador para qualquer alma inquieta.  O final do período movia-se com passadas de gigante. Dias, alguns dias para amainar este bulício de adolescentes e jovens que me consomem as entranhas. Eu – já com tantos ontens – permanentemente impelida a uma energia sôfrega, frenética, como se tivesse sido anunciado o fim do mundo.
Sentia-me triste com a desgraça que batia de frente nas nossas vidas - uma desgraça sem qualquer solução, sem possibilidade de ser amainada por uma ténue réstia de esperança. O passado, trampolim para sonhos futuros, vestia-se de morte.  
O passado vestia-se de morte.
Já na rua, poisava o olhar nos prédios perfilados ainda de janelas cerradas – o que  está para além delas? -, sem que deixasse de sentir vontade de voltar atrás, correr as persianas do meu quarto e enfiar-me na cama.
Quando estava mesmo a chegar, não reconheci a escola. Toda a fachada estava coberta de placas metálicas – trabalhadas ao estilo manuelino – que não deixavam ver nada para dentro. Apenas uma porta permitia o acesso. Atónita e incrédula, lá me aproximei. O controle era apertado. Uma figura robusta, de membros desconformes e sem cabeça fez-me uma vénia com uma mão delicada e garantiu-me que eu ia ser feliz. Fui a última a entrar. A porta fechou-se. Abateu-se sobre mim uma névoa de medo.
(As janelas cerradas – o que estará para além delas?). 
Chegada ao átrio, deram-me a mão com ternura e disseram-me que, ali, a única realidade para viver, era o sonho.
E, de repente, pelas fendas do tempo incerto nasceu maio, dia treze. O manto da Virgem escurecia. A tarde caía pelas fachadas e o céu já não era azul. Baixinho balbuciei:

                                 Nesta hora derradeira
                                 morre-te o corpo na alma.

                                 Nada faças.
                                 Nada digas
                                 Nada sintas.
             
                                 Deixa desaguar a eternidade nas teias que te prendem.
                                 Estende-se um pomar pelo teu corpo.
                                 Um mar doce acerca-se das tuas mãos.
                                 Baloiçam harpas penduradas nas tuas artérias.
                                 É maio e o etéreo toca-te vagarosamente.
Evo, só evo.

                                 Já nada fazes.
                                 Já nada dizes.
                                 Já nada sentes.

                                 Evo, só evo.

                                 Porque  agora
                                 sem que se veja
                                 Vive-te a alma no corpo.

                                 Amaviosamente.

E do ventre de maio nasceu um dezembro triste e sombrio.
(As janelas cerradas – o que estará para além delas?). 
- Anda! Não temas! Não foi em vão que caí, sozinha. Sonha comigo! Em Matemática sonhar é ∞.
Em Matemática sonhar é...
Então, vi romances de portas escancaradas – numa estava Blimunda à procura de Baltasar -, matemáticos e físicos a sair dos ecrãs dos computadores, escritores a discutir – lutas de ego – com filósofos.
Dezembro, dolorosamente, pariu fevereiro.
Lá fora, o dia pálido e taciturno estatelava-se na calçada incerta do tempo e das vidas - alfas e ómegas – que em passada incerta festejavam o dia de um enamoramento, tantas vezes, infeliz.                  
Ora. Hora. Sempre a hora.
A figura robusta aninhava-se, com dores, junto a uma das placas metálicas. Os meses eram chagas de um tempo crucificado.
Se bastasse desejar ser amado. Se.
Num sorriso largo, o poeta olhava a folha em branco – procurava as palavras.
Há anos que lutava contra a hora. Uma hora dele valia três segundos. Tudo tentou. Tudo sem nada. Coração deserto, mãos vazias, rosto suado. Foi assim aquela hora de três segundos. Deu um beijo doce, brando, afável à vida - Até amanhã!- correu expulsando-se de si mesmo e em forma de lebre veloz arremessou-se pela janela. E quem viu… Viu. Corpo em queda com coração deserto e mãos vazias a sobrevoar a calçada, a abraçar a hora. O poeta – alfa e ómega – estatelado no passeio. Sem tempo. Sem.
Entoavam as quatro estações de Vivaldi. Vivalma.
Cordeiro imolado na periferia da hora. Também minha.
(As janelas cerradas – o que estará para além delas?).
A figura robusta definhava lentamente. Ouvi-lhe o último suspiro.    
De fora, os meus filhos chamavam-me – Mãe! Mãe! -, mas eu não podia regressar.
Estava sozinha. Alucinada?! Continuamente a tristeza se estendia dentro de mim como um manto.

Cansada – porque sonhar dá cá um trabalho! -, sentei-me no último verso do poema Tabacaria, recostei a cabeça no primeiro verso e, baixinho, solucei.
O sonho nada acrescentara à minha miséria.

7 comentários:

  1. Evoluir congratula-se com a participação dum novo autor - Virgínia Rafael - que nos remeteu um texto em que aborda, de uma forma extremamente profunda, um tema que, de tão presente, nos é tão difícil de enfrentar. É por isso que sempre que alguém parte uma marca indelével permanece em cada um de nós. Obrigada, Virgínia, continuamos a contar com a sua participação.

    ResponderEliminar
  2. Ao ler este texto,tristes e longos pensamentos passaram diante dos meus olhos. Como eu senti essa tristeza infinda e que não mais acaba. Gostei muito de termos mais um colaborador. Obrigada.

    ResponderEliminar
  3. O texto que a Virgínia nos enviou retrata-nos com uma extraordinária perfeição a dor da perda – e de perdas sucessivas – que de tão intensas se tornam parte íntegra de nós e se avolumam à medida que os dias vão passando – em contrário com o que realmente seria expectável.
    A Virgínia fez um trabalho que lhe impôs um luto e ao partilhá-lo connosco – seus leitores – deu-nos a oportunidade de reflectir sobre conceitos tão profundos como a vida e a morte, a passagem e a imortalidade, o sonho e o infinito. Fundindo a prosa com a poesia criou um texto de rara beleza e de uma imensa profundidade. Obrigada Virginia, gostámos muito que se tenha juntado ao nosso grupo e vamos querer mais participações como esta.

    ResponderEliminar
  4. É neste país que o ensino está em crise? Com professores tão profundos quanto Virgínia Rafael e outros. Outros e ela que trabalham, lutam, sofrem e alguns adquirem mesmo o direito a desistir... Como o horrível se pode tornar belo... "Deu um beijo doce, brando, afável à vida - Até amanhã!"
    Será que algum dia os "monstros" a vão entender?
    Parabéns e visite-nos sempre.

    ResponderEliminar
  5. Encarada como inexorável e próxima, a morte expande-se, antecipa-se, invadindo e profanando a vida com as suas sombras carregadas de angústia, de agonia, de sem-sentido...
    É preciso abrir as portas e deixar entrar o "sol apaziguador" que continua a embalar o sonho.
    Belo texto, Virgínia, obrigada!

    ResponderEliminar
  6. Mesmo sonhando se constrói a vida, deambulando de alegoria em alegoria, na espectativa rítmica de controlar o impossível. Belo texto, num jogo perfumado de palavras de profundidade que perturbam os sentidos.

    ResponderEliminar
  7. Senti o texto no inverso da sua corrente!
    Com cansaço, só cansaço, a foz fez-se nascente!
    De tão puro, não agradeço.
    Virgínia, espero a hora de outro momento absoluto!

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...