quinta-feira, 30 de março de 2017

Tão perto e tão longe


© José Teixeira

A chuva caía suavemente, libertando-se de uma teimosa névoa, que pairava em forma de véu compacto sobre a copa das árvores da avenida, nesta manhã de outono, em que o sol se perdeu entre as nuvens e o vento não se fazia sentir.

Embrulhado na minha capa, caminhava eu pela calçada, no passeio matinal com que inicio o meu dia. Adiante de mim seguia uma jovem mãe, em passo acelerado. Um corpo esbelto protegido por um vestido esverdeado, talvez um pouco gasto, mas gracioso na forma como fazia sobressair a beleza da jovem. 
Nunca o Homem, estando tão perto,
esteve tão longe do Homem
Com uma mão arrastava uma criança com cerca de três anos e na outra segurava um telemóvel bem encostado ao ouvido. A conversa não lhe estaria a agradar, pois da sua boca choviam raios e coriscos. A chuva continuava a cair, o telemóvel não se molhava e a criança choramingava, mas a mãe não a ouvia. Os automóveis passavam velozmente perturbando o ambiente com o estrépito dos motores. Não conseguiam escutar o que a jovem dizia, mas eu que seguia mesmo ali, atrás daquela mãe com a criança pela mão, numa manhã de chuva miudinha, ouvia-a muito bem. E, sobressaíam o toc, toc dos sapatos de tacão alto e as palavras azedas dirigidas ao pai da criança que a escutava algures.

Meti instintivamente a mão no bolso à procura do meu telemóvel. Será que me sentia inseguro? Talvez. Confesso que às vezes apetece-me mandá-lo às urtigas, porque ao facilitar-me a ligação aos meus familiares e amigos, retira-me a carga afetiva de uma troca de olhares de uma expressão facial com um sorriso alegre e cativante, quiçá, uma lágrima teimosa que transmite a informação de que algo vai mal na relação.

Oh! Como eu gosto de usufruir, olhos nos olhos, as sensações e emoções que os cinco sentidos doados pelo Criador me permitem, na tertúlia da mesa do café ou no aconchego do sofá…  E, quantas vezes, ouço do fundo da linha imaginária que nos separa, um simples e seco “olá, estou bem”, obrigado…

Outras situações há em que funciona como tábua de salvação, para obter a notícia que me traz felicidade, no momento, ou, me ajuda rapidamente a resolver um problema. Daí a inquietação de procurá-lo no bolso da calça.

De uma coisa estou certo: Nunca o Homem, estando tão perto, esteve tão longe do Homem, e deve-o às tecnologias de comunicação, como o telemóvel e as “redes sociais” da internet.


Despedi-me daquela mãe numa esquina e segui o meu caminho, pensativo, levando o telemóvel dela na minha cabeça.


José Teixeira ©2017,Aveiro,Portugal

6 comentários:

  1. É com um trabalho de José Teixeira que atingimos hoje as
    70 000 visualizações. O Evoluir não pode deixar de assinalar esta etapa que marca a nossa presença junto de todos os autores que se têm associado a este desejo de dar voz a quem usa a escrita para revelar o gosto pela palavra. Continuaremos por aqui enquanto houver um autor que queira partilhar com outro este espaço.

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  2. Num mundo onde as tecnologias se apoderaram das nossas vidas, esta reflexão conduz-nos por um caminho que nos leva a indagar porque está hoje o Homem tão longe de si mesmo. Gostei sobretudo da relação que o José nos apresentou entre as relações virtuais e/ou tecnológicas e as reais que silenciamos perante a realidade que nos passa ao lado.

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  3. De Idalinda Pereira, recebemos o seguinte comentário:
    Um texto muito atual. Parabéns José. Continua.

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  4. De Fátima Nunes recebemos o seguinte comentário:
    "Um belo texto, sobre um problema cada vez mais visível: o modo como se transformam as coisas boas da tecnologia em alienação, exibição, estupidificação, e outras coisas mais, terminadas em -ao ou não..."

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  5. De Natália Vale recebemos o seguinte comentário:
    "Parabéns Zé. Muito bom."

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