© José Teixeira e Albertina Vaz
Pela frincha
da janela, olhava a rua e a chuva que caía insistente. As palavras iam e vinham
e não se quedavam. Um vazio imenso apoderou-se do espaço. Desde que ela partira
tudo se enublara. Até a luz do sol parecia ter-se diluído. Olhou-se no tempo e
sentiu-se perdido. Só, e sem nada a que se agarrar.
Caminhava ligeiro pela ingreme rua. Não entendia porque tinha
tomado tal atitude, ao cair da noite. Sentia necessidade de partir. Talvez ver
as luzes da cidade. Caminhar…esquecer…porque afinal era véspera de Natal, no
seu mundo de solidão.
Tiveram
apenas um filho e há muito que não recebia notícias dele. Aquela terra, lá
longe, para onde partira, roubara-lhe os dias para ver crescer os netos. Nunca
foi com eles ver o mar nem ouvir os trinados das gaivotas, espraiando as asas em
dunas de areia.
Até ao momento nada o tem afastado da sua casinha, onde se dedica
a cultivar leguminosas e hortícolas que reparte com os vizinhos. Foi construída
com o seu suor e o da Ermelinda, a sua eleita e amada. Ali viu nascer o filho.
Dali o viu partir, em busca dum futuro melhor. Criou família e deu-lhe dois
netinhos. Ao princípio, vinha passar férias. Até construiu uma casa e o seu
sonho era regressar um dia. Porém, as voltas que a vida foi dando, afastaram-no
da terra mãe.
- Que
estranho! – pensou – este ano nem o meu cunhado me convidou para comer uma
rabanada, - e sentiu-se
sozinho. Ele e os seus velhos, lá, naquele lar, aonde não tinha coragem de
voltar.
O comboio chegou a horas de esconder mais um passageiro, sem destino.
É noite quando se entranha nas ruas iluminadas da cidade morta, onde um
silêncio escorregadio desliza violentamente pelas horas, que teimam em não
passar. Na mente, baila-lhe um turbilhão de pensamentos que tenta esmagar entre
as luzes feéricas.
Deixa entrar de novo a Ermelinda.
– Linda! – balbuciou, em silêncio – O que devo fazer?
Consegue vê-la com
flamância, tal como ela estava naquela tarde em que fizeram amor
clandestinamente, junto à queda de água de Vilarinho das Furnas, desnuda de
tudo o que é térreo. Como era bela a sua pele cor de chá aferventado! O amor,
em que se unificaram, fora tão puro e cristalino como as gotas de água que lhes
aspergiam os corpos. Sente esse amor a correr de novo através do seu espírito,
renovando-lhe a esperança na vida. Sente-o tão fortemente como um choque
elétrico a trespassar-lhe o coração e a gritar-lhe - tens uma vida para viver!
Deixa-se embalar pelo sonho, que o leva aos tempos de menino, e
aos pais. Consegue parar na sua infância. No carinho com que o envolveram… e
vê-os de novo, agora já velhinhos, ali bem perto.
Porque não visitá-los hoje? Já não falam, nem o irão reconhecer,
mas são os seus pais. Talvez eles tenham ceia de Natal. Quem sabe se não
sobrará um pouco do seu jantar, para lhe aconchegar a fome, que já aperta.
No
outro lado da cidade, o trem de aterragem rasou o asfalto.
Pedro, o filho distante, regressara a casa. Esta era a sua terra e nela se
revia, sempre que voltava. Esta forma nossa de viver o longe e a distância, com
um olhar cá dentro e uma dor sofrida, de quem parte, ficando, e de quem fica,
resistindo.
Dentro em
pouco, abraçaria o pai e secaria as lágrimas de ambos. Vinha sem avisar – era
véspera de Natal – e a surpresa ia saber-lhes bem. A partida da mãe, sem que
nenhum dos dois estivesse preparado, – ninguém está nunca preparado para um
adeus que se não quer – e a idade avançada dos avós, há algum tempo a viverem
numa casa que não era a sua, isolaram o pai, num silêncio sem voz, cujo grito
lhe chegou, num apelo do tio.
O bulício da
cidade quase o intimidou - uma correria desenfreada, de quem ainda não
terminara as últimas compras. As luzes, que enchiam a cidade e a viatura para
se dirigir ao norte que ainda não chegara, queimavam-lhe o tempo. Os filhos que
reclamavam com fome, as bagagens que tardavam. Tudo parecia concitar-se para
estragar uma noite que queria única.
Já na
estrada, a chuva parou de cair e um sorriso iluminou-lhe o rosto. Ia gostar de
rever o pai, de o abraçar, de esquecer todos os anos que estivera longe,
vivendo numa terra estranha, dividido entre a família que criara e a que
deixara na terra que o vira nascer.
De súbito,
um som estridente destrói, num segundo, o seu sonho de abraços.
- Não sei do
teu pai, não está nem na tua casa, nem na casa dele.
Uma dor no
peito avassalou tudo à sua volta. Ao passar pela casa onde sabia que os seus avós
se encontravam, sentiu necessidade de entrar. A distância a que a vida o
obrigara estava a doer-lhe no peito. A medo, bateu à porta. A medo, entrou numa
casa branca de sonhos e vazia de afectos. A medo, aproximou-se do quarto dos
avós. Uma lágrima teimosa caia-lhe pelo rosto. E o pai, por onde andará o pai?
Desorientado e sozinho, tudo lhe poderá acontecer.
À porta do
quarto, acalentou a esperança. Vacilante, quis entrar mas receou o vazio.
E foi o filho mais pequenito que, numa alegria incontida, irrompeu por ali
dentro indagando:
- Avô, onde estás? Que saudades tive de ti! Há tanto tempo
que não te vejo e queria muito voltar a brincar contigo. Podemos ir fazer um
boneco de neve?
As crianças
sabem quebrar barreiras e eliminar temores. E dar corpo aos sonhos.
Lá dentro, a
família reunida. Era tempo de encontrar abraços e embalar sorrisos. Ainda era
possível regressar a casa do tio onde tinham, à sua espera, uma ceia quentinha
com bacalhau, vinho velho, arroz doce, rabanadas e muito calor.
Naquela
noite, na casa grande não era o Natal que tinha chegado. Era a família que
tinha chegado ao Natal. E ao abraço quente duma ceia com amor.
© Albertina Vaz e José Teixeira, 2016, Portugal
O afecto foi mais forte que a ansiedade e o medo.O narrador deixou-se embalar nas circunstâncias e teve um final feliz. Gostei
ResponderEliminarDe Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarAleluia! Ja tinha saudades do nosso EVOLUIR: Um tema lindíssimo onde a realidade se repete.Escrito com grande mestria de historiado. Parabéns Albertina Vaz. Ao José Teixeira o meu obrigado pela partilha. Gostei muito.
De Rosa Fonseca recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarUm texto muito bom e que nos remete a algumas reflexões...Obrigada! Bjs
De Maria Alice Paiva Santos recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarFantástico e emocionante.... adorei Beijos e obrigada.
De Ró Vale recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarAlbertina,que lindo!!Comoveu-me imenso.....mas adorei!Bem haja
De Maria de Fátima Soares recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarBonito conto, parabéns. Um ótimo Natal e um 2017 cheio de coisas boas
Um belo conto recheado de afectos que nos faz refletir sobre "coisas" que mexem connosco.Parabéns aos autores e ao Evoluir que renasceu.
ResponderEliminarDe Natália Vale recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarParabéns Albertina Vaz e José Teixeira. Um entremeado muito bem conseguido. Uma história comovente e tão actual. Gostei.
Um Feliz Natal e que 2017 vos permita a concretização dos vossos sonhos. Muita saúde. Beijinhos
De Fernando Morgado recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarEste é mais que um conto de Natal. É, também, uma partida de Natal. A Albertina e o José conseguiram brincar com algumas emoções e afetos, provocando-me uma lágrima em vai-vem sem saber o que fazer. Gostei pelo exercicio imaginário a que me conduziu. Estes meninos - ele e ela - são bem capazes de nos fazer chorar. Malandros! E, depois, acham que merecem prenda!
De Ana Brito Lança recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarPelo que li até agora parece que estamos todos a associar natal a solidão, desconforto, tristeza... felizmente temos conseguido dar, literalmente, a volta ao texto!!! Gostei deste conto e a frase que achei muito forte foi a final: ' não era o Natal que tinha chegado. Era a família que tinha chegado ao Natal' que me faz pensar que será natal sempre que a família se reunir. Ah e também achei o título 'Ser PRESENTE no Natal' de génio!
De Teresa Morais recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarEste conto também me comoveu - um Natal de desencontros, e reencontros, com espaço para ausências, afectos, sonhos e esperança. Parabéns, Albertina Vaz e José Teixeira