quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Ser PRESENTE no Natal

© José Teixeira e Albertina Vaz   
                                                                                                                                        

Pela frincha da janela, olhava a rua e a chuva que caía insistente. As palavras iam e vinham e não se quedavam. Um vazio imenso apoderou-se do espaço. Desde que ela partira tudo se enublara. Até a luz do sol parecia ter-se diluído. Olhou-se no tempo e sentiu-se perdido. Só, e sem nada a que se agarrar.   

Caminhava ligeiro pela ingreme rua. Não entendia porque tinha tomado tal atitude, ao cair da noite. Sentia necessidade de partir. Talvez ver as luzes da cidade. Caminhar…esquecer…porque afinal era véspera de Natal, no seu mundo de solidão.  

Tiveram apenas um filho e há muito que não recebia notícias dele. Aquela terra, lá longe, para onde partira, roubara-lhe os dias para ver crescer os netos. Nunca foi com eles ver o mar nem ouvir os trinados das gaivotas, espraiando as asas em dunas de areia.  

Até ao momento nada o tem afastado da sua casinha, onde se dedica a cultivar leguminosas e hortícolas que reparte com os vizinhos. Foi construída com o seu suor e o da Ermelinda, a sua eleita e amada. Ali viu nascer o filho. Dali o viu partir, em busca dum futuro melhor. Criou família e deu-lhe dois netinhos. Ao princípio, vinha passar férias. Até construiu uma casa e o seu sonho era regressar um dia. Porém, as voltas que a vida foi dando, afastaram-no da terra mãe.

- Que estranho! – pensou – este ano nem o meu cunhado me convidou para comer uma rabanada, - e sentiu-se sozinho. Ele e os seus velhos, lá, naquele lar, aonde não tinha coragem de voltar.  


O comboio chegou a horas de esconder mais um passageiro, sem destino. É noite quando se entranha nas ruas iluminadas da cidade morta, onde um silêncio escorregadio desliza violentamente pelas horas, que teimam em não passar. Na mente, baila-lhe um turbilhão de pensamentos que tenta esmagar entre as luzes feéricas. 
Deixa entrar de novo a Ermelinda. 

– Linda! – balbuciou, em silêncio – O que devo fazer? 

Consegue vê-la com flamância, tal como ela estava naquela tarde em que fizeram amor clandestinamente, junto à queda de água de Vilarinho das Furnas, desnuda de tudo o que é térreo. Como era bela a sua pele cor de chá aferventado! O amor, em que se unificaram, fora tão puro e cristalino como as gotas de água que lhes aspergiam os corpos. Sente esse amor a correr de novo através do seu espírito, renovando-lhe a esperança na vida. Sente-o tão fortemente como um choque elétrico a trespassar-lhe o coração e a gritar-lhe - tens uma vida para viver!

Deixa-se embalar pelo sonho, que o leva aos tempos de menino, e aos pais. Consegue parar na sua infância. No carinho com que o envolveram… e vê-os de novo, agora já velhinhos, ali bem perto.  

Porque não visitá-los hoje? Já não falam, nem o irão reconhecer, mas são os seus pais. Talvez eles tenham ceia de Natal. Quem sabe se não sobrará um pouco do seu jantar, para lhe aconchegar a fome, que já aperta. 

No outro lado da cidade, o trem de aterragem rasou o asfalto. Pedro, o filho distante, regressara a casa. Esta era a sua terra e nela se revia, sempre que voltava. Esta forma nossa de viver o longe e a distância, com um olhar cá dentro e uma dor sofrida, de quem parte, ficando, e de quem fica, resistindo. 

Dentro em pouco, abraçaria o pai e secaria as lágrimas de ambos. Vinha sem avisar – era véspera de Natal – e a surpresa ia saber-lhes bem. A partida da mãe, sem que nenhum dos dois estivesse preparado, – ninguém está nunca preparado para um adeus que se não quer – e a idade avançada dos avós, há algum tempo a viverem numa casa que não era a sua, isolaram o pai, num silêncio sem voz, cujo grito lhe chegou, num apelo do tio. 

O bulício da cidade quase o intimidou - uma correria desenfreada, de quem ainda não terminara as últimas compras. As luzes, que enchiam a cidade e a viatura para se dirigir ao norte que ainda não chegara, queimavam-lhe o tempo. Os filhos que reclamavam com fome, as bagagens que tardavam. Tudo parecia concitar-se para estragar uma noite que queria única.  

Já na estrada, a chuva parou de cair e um sorriso iluminou-lhe o rosto. Ia gostar de rever o pai, de o abraçar, de esquecer todos os anos que estivera longe, vivendo numa terra estranha, dividido entre a família que criara e a que deixara na terra que o vira nascer.  

De súbito, um som estridente destrói, num segundo, o seu sonho de abraços.  
- Não sei do teu pai, não está nem na tua casa, nem na casa dele. 

Uma dor no peito avassalou tudo à sua volta. Ao passar pela casa onde sabia que os seus avós se encontravam, sentiu necessidade de entrar. A distância a que a vida o obrigara estava a doer-lhe no peito. A medo, bateu à porta. A medo, entrou numa casa branca de sonhos e vazia de afectos. A medo, aproximou-se do quarto dos avós. Uma lágrima teimosa caia-lhe pelo rosto. E o pai, por onde andará o pai? Desorientado e sozinho, tudo lhe poderá acontecer.  

À porta do quarto, acalentou a esperança. Vacilante, quis entrar mas receou o vazio.  E foi o filho mais pequenito que, numa alegria incontida, irrompeu por ali dentro indagando: 

- Avô, onde estás? Que saudades tive de ti! Há tanto tempo que não te vejo e queria muito voltar a brincar contigo. Podemos ir fazer um boneco de neve? 
As crianças sabem quebrar barreiras e eliminar temores. E dar corpo aos sonhos.

Lá dentro, a família reunida. Era tempo de encontrar abraços e embalar sorrisos. Ainda era possível regressar a casa do tio onde tinham, à sua espera, uma ceia quentinha com bacalhau, vinho velho, arroz doce, rabanadas e muito calor. 

Naquela noite, na casa grande não era o Natal que tinha chegado. Era a família que tinha chegado ao Natal. E ao abraço quente duma ceia com amor. 


    © Albertina Vaz e José Teixeira, 2016, Portugal                                                                                                                    

11 comentários:

  1. O afecto foi mais forte que a ansiedade e o medo.O narrador deixou-se embalar nas circunstâncias e teve um final feliz. Gostei

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  2. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    Aleluia! Ja tinha saudades do nosso EVOLUIR: Um tema lindíssimo onde a realidade se repete.Escrito com grande mestria de historiado. Parabéns Albertina Vaz. Ao José Teixeira o meu obrigado pela partilha. Gostei muito.

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  3. De Rosa Fonseca recebemos o seguinte comentário:
    Um texto muito bom e que nos remete a algumas reflexões...Obrigada! Bjs

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  4. De Maria Alice Paiva Santos recebemos o seguinte comentário:
    Fantástico e emocionante.... adorei Beijos e obrigada.

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  5. De Ró Vale recebemos o seguinte comentário:
    Albertina,que lindo!!Comoveu-me imenso.....mas adorei!Bem haja

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  6. De Maria de Fátima Soares recebemos o seguinte comentário:
    Bonito conto, parabéns. Um ótimo Natal e um 2017 cheio de coisas boas

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  7. Um belo conto recheado de afectos que nos faz refletir sobre "coisas" que mexem connosco.Parabéns aos autores e ao Evoluir que renasceu.

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  8. De Natália Vale recebemos o seguinte comentário:
    Parabéns Albertina Vaz e José Teixeira. Um entremeado muito bem conseguido. Uma história comovente e tão actual. Gostei.
    Um Feliz Natal e que 2017 vos permita a concretização dos vossos sonhos. Muita saúde. Beijinhos

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  9. De Fernando Morgado recebemos o seguinte comentário:
    Este é mais que um conto de Natal. É, também, uma partida de Natal. A Albertina e o José conseguiram brincar com algumas emoções e afetos, provocando-me uma lágrima em vai-vem sem saber o que fazer. Gostei pelo exercicio imaginário a que me conduziu. Estes meninos - ele e ela - são bem capazes de nos fazer chorar. Malandros! E, depois, acham que merecem prenda!

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  10. De Ana Brito Lança recebemos o seguinte comentário:
    Pelo que li até agora parece que estamos todos a associar natal a solidão, desconforto, tristeza... felizmente temos conseguido dar, literalmente, a volta ao texto!!! Gostei deste conto e a frase que achei muito forte foi a final: ' não era o Natal que tinha chegado. Era a família que tinha chegado ao Natal' que me faz pensar que será natal sempre que a família se reunir. Ah e também achei o título 'Ser PRESENTE no Natal' de génio!

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  11. De Teresa Morais recebemos o seguinte comentário:
    Este conto também me comoveu - um Natal de desencontros, e reencontros, com espaço para ausências, afectos, sonhos e esperança. Parabéns, Albertina Vaz e José Teixeira

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