Elsa Borges
Junho
de 1966 chegava ao fim. Outra fase da minha vida se desenhava no futuro que,
apesar de desconhecido ou talvez por isso, eu desejava que acontecesse
rapidamente. Queria ir estudar para a cidade, experimentar vivências de alguma
independência, carregar livros nos braços, apenas numa capa e abandonar a mala
que usei, desde a primeira classe que, para além de gasta era já objeto fora de
moda.
A
nossa professora preparava-nos com empenho para o desafio de nos apresentar ao
exame da quarta classe na Escola da Glória. Dizia-nos com frequência:
– Quero
os nomes das minhas alunas inscritos no quadro dos “Aprovados com
distinção”.
Lá, na cidade, pensam que por estarmos para cá da 109, não somos capazes de ser
tão bons ou melhores que eles!
"Aprovados com distinção" |
Havia
um grupo de alunas que assumia como missão este objetivo da professora e,
então, cada uma com o seu melhor, criava à sua volta pequenos grupos de
companheiras e, para além dos horários das aulas, procurava transmitir às suas
“aprendizes” de forma simples, de igual para igual, como conseguiam resolver
problemas de matemática, memorizar sem hesitar as tabuadas, jogar com as
palavras na redação, papaguear o Portugal dos mapas, com os seu rios,
montanhas, linhas férreas e culturas de cada região, contar a História de
Portugal desde Viriato a Salazar, como se fosse um verdadeiro conto. Falar de
tudo isto como sendo essencial para o nosso futuro, sabermos de onde viemos e
para onde queremos ir. Era assim que conseguíamos aprender umas com as outras.
Foi
assim que um grupo, a pé, em fila indiana, escoltado pelos professores, saiu de
S. Bernardo em direção ao centro da cidade. Brilhou, para orgulho dos mestres
de quem foi muito elogiado o trabalho. A prestação das escolas para além da 109
foi considerado excelente.
Eu
por mim senti um choque ao presenciar aqueles bandos de alunos palradores,
em
contrastes connosco, os tímidos, vindos das áreas rurais como eu e percebi o
que a nossa professora queria dizer com a expressão “para além ou para cá da
109”.
"para além ou para cá da 109" |
Olhei
os campos de milho que existiam junto à linha de caminho-de-ferro, olhei as
ruas largas com os seus edifícios mais ricos e embelezados por azulejos de
flores e cores exuberantes, com guardas de varandas e janelas em renda de ferro
forjado. Outros edifícios, mais recentes, despontavam já, numa corrente mais
cubista, contestada pelos aveirenses pela sua inadequação ao espaço. Depois a
famosa ria de Aveiro que, vinda dos lados do mar, atravessava a cidade por
baixo da 109 e se encontrava com pequenos riachos vindos de S. Bernardo,
passando por Vilar, engrossando o caudal de águas lodosas.
Vi
que a natureza se encontrava e vencia linhas divisionistas.
Vi o
mercado do peixe e fiquei fascinada com o linguajar das peixeiras.
Vi
lá longe as marinhas, os montes de sal, as casinhas dos marnotos com as suas
figueiras ao pé.
Vi lá longe as marinhas... |
Vi o
casario baixinho revestido a azulejo, com a chaves nas portas, convidando a
entrar. As ruas e vielas estreitinhas, onde de janela para janela se estendia a
mão para dar ou receber, um punhado de sal, uma caixa de fósforos ou mesmo um
prato de sardinhas já amanhadas para o almoço.
Vi o
mercado da hortaliça, onde vendedeiras de rostos afogueados e cabelos atados em
carrapitos, junto à nuca, ofereciam frescura e cor, arrancada à terra que
amanhavam de sol a sol, com braços fortes e mãos marcadas pela dureza do
trabalho. Vi quem comprava, sobretudo mulheres, regatear preços, não tanto
porque não reconhecessem o valor dos produtos, mas porque estava na massa do
sangue esta guerra para ver quem levava a melhor.
Vi montras de comercio tradicional |
Senti
que a nossa cidade era bela e diversificada. Senti que não era preciso mudar
nada, só respeitar o seu crescimento futuro, alicerçado no progresso justo e
sustentável, onde os habitantes das zonas rurais tivessem um espaço idêntico
aos citadinos, tivessem as mesmas oportunidades.
No
meu coração ardia o desejo, ainda hoje este fogo não se apagou, de trazer a
minha escola primária para o liceu que ia frequentar. Como eu teria gostado que
houvesse grupos em que cada um, desse o seu melhor e partilhasse com os
companheiros a forma como atingia mais sucesso.
Talvez
não tivesse havido necessidade de destruir o tecido rural envolvente. Talvez a
“cidade” tivesse muito para aprender no campo. Talvez assim os meninos não
vivessem na ilusão de que os frangos nascem dentro de embalagens no
supermercado e as batatas, antes de serem colocadas em caixotes para vender,
tinham sido o caule de uma planta chamada batateira.
O
meu sonho seria um forte abraço da ria aos campos e destes à ciência das nossas
escolas, à nossa universidade e ao nosso tecido empresarial.
É um
sonho! Sonho só existe no nosso espírito. Mas o sonho comanda a vida e nós
somos responsáveis por construir uma verdadeira cidadania na nossa cidade,
fundamentada na partilha, na solidariedade no usufruto comunitário desta
herança material e imaterial e fazê-la crescer para quem vier a seguir a nós.
Elsa Borges ©2015,Aveiro,Portugal
E se aquilo a que se convencionou chamar desenvolvimento, um dia, fizesse marcha atrás:"Talvez não tivesse havido necessidade de destruir o tecido rural envolvente. Talvez a “cidade” tivesse muito para aprender no campo." E, já quase, no fim do sonho, as pessoas acordaram e descobriram menos felicidade...mas, do mal o menos, leram um delicioso texto.
ResponderEliminar