sábado, 22 de dezembro de 2012

SOU...

Albertina Vaz



Sou um homem comum: tenho cerca de um metro e setenta, não sou gordo nem sou magro, tenho olhos castanhos, cabelo curto, visto calças de ganga aos fins de semana e, quando posso, gosto de passear à beira-mar ou de ficar sentado numa esplanada, olhando o horizonte sem pensar em nada. Gosto de crianças que riem, de pássaros a voar, de gaivotas que circulam, do nascer do sol, duma manhã de chuva miudinha e de barcos que cortam as ondas e rasgam o mar. Gosto duma música dolente, de um toque de guitarra, de um som de piano, de um livro de muitas páginas, de uma página em branco e de uma foto de reflexos.
E num momento, sem saber como nem porquê, senti-me ainda mais vulgar: estou desempregado!
Primeiro, foi não acreditar no que estava a ouvir: entra, entra. Vamos ao assunto sem mais delongas: tu sabes que isto está mau, que já não se vende como antigamente, que temos que racionalizar os custos, e tu também já não és novo… Não, não, tu és um excelente profissional, tens um imenso talento… Mas é assim: passa pelos recursos humanos e tenho a certeza que em breve conseguirás até uma melhor situação.

Assim, de um momento para o outro, como quem bebe um copo de água ou se refresca com a brisa do mar, numa noite de luar.
Depois o espanto: já não sou novo? Então com quarenta anos sou velho? E por ser velho já não sei trabalhar, já perdi capacidades? Pensava que à medida que vivemos adquirimos maior maturidade, que somos capazes de desenvolver maior volume de trabalho e com mais qualidade… Mas parece que estava enganado: já não sou novo e estou desempregado!




Nos primeiros dias enchi-me de esperança: vai servir-me para pôr as ideias em dia, para me refazer das férias que não tive porque o dinheiro já não dá para tudo, para ler os livros que amontoei, para montar um bom projecto, para voltar a pensar naquela ideia inovadora que tranquei na gaveta dos sonhos, para voltar a sorrir… Há quanto tempo não sei o que é esquecer-me de mim num abraço sem tempo!
Os dias foram passando: as portas não se abriram, os projectos não tinham viabilidade, o dinheiro ia escasseando, as dívidas aumentando, a angústia tomava conta dos meus dias, as crianças olhavam-me com olhos enormes e a minha companheira chegou um dia a casa sem conseguir falar. Compreendi imediatamente o que se passava: ela estava também desempregada!

E agora? Que vamos fazer? De que vamos viver? Como vamos arranjar comida para dar às crianças? E como vamos comprar os livros para a escola? E se um deles adoece?

O sono foi-se: ficámos em silêncio, abraçados um ao outro, sem palavras, agarrados às nossas frustrações e sem sabermos como sair delas. Desesperados no nosso vazio sem o conseguirmos encher, alucinados no nosso pavor dum amanhã pleno de escuridão.
Depois dei conta que havia mais movimento na minha casa e na casa dos vizinhos e na casa dos do outro lado da rua, e na casa dos da outra rua. Era dia e as pessoas não saiam para ir trabalhar. Que bando de malandros, a viverem à custa dos outros? Dos outros? Mas de quem, se todos estamos desempregados? Todos ou quase todos. Bem esquecia-me dos políticos. Esses estão cada vez mais empregados: são os ministros, os filhos dos ministros, os secretários de estado, os assessores, os amigos dos amigos de suas excelências…
E depois restam-nos os velhos que dividem a magra reforma que recebem, depois de uma vida inteira de trabalho e descontos, connosco: filhos e netos desempregados!

E quando eles se forem? Vêm acusar-me de que eu é que tenho a culpa da dívida? Eu, que sou um homem vulgar, que tinha um trabalho vulgar, uma família vulgar, com filhos que também comem e também vão à escola. Sou velho demais para trabalhar! Sem mais!
Esta revolta emergente vai deixar marcas em cada um de nós: já não temos sorrisos para sorrir, já nem sabemos como se solta uma gargalhada. Andamos pé ante pé, deprimidos, com medo que dêem pela nossa presença e nos arrastem para fora de nada. Há dias ouvi um jovem, que partia numa viagem sem regresso, pedir para não tributarem a saudade nem as lágrimas porque era só o que levava do seu país.

Já não tenho respostas, penso até que já nem tenho perguntas. Soam-me a oco, a falso, a descrença, a hipocrisia, a simulação … Já não há cor para a esperança porque as cores fugiram também, já não há cheiros para os amores porque os cheiros desapareceram, já não há sabores para a vida porque até o sabor nos querem tirar.

Sou um homem comum sem qualquer hipótese de fuga: sou, um desempregado!

2 comentários:

  1. Incrivelmente realista este texto reflete com imensa sensibilidade o maior e mais penoso pesadelo da sociedade atual. Parece estar a tornar-se num lugar comum! Não nos adaptemos. Sempre que possamos, mostremos a nossa indignação e a nossa revolta. A origem de tudo isto está neste capitalismo desenfriado que, MUITOS (muito bem intencionados),nunca imaginaram viver...
    Parabéns. Este texto é uma arma, porque, muito bem conseguido.

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  2. Perante este texto, embora quase tudo já tenha sido dito, eu tenho de subscrever inteiramente o que o José Luís comentou. O poder da palavra é a arma que, conetada com a sensibilidade, poderá dar voz à nossa indignação e revolta.
    De que estamos à espera?
    Parabéns, Albertina.

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