sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ESCAPATÓRIA

 Fernanda Reigota




É habitual ouvir dizer “Esta folha em branco bloqueia-me e não sei por onde começar”. Pois, a mim, bloqueia-me esta página negra que me estão a fazer engolir. Já vivi em tempo de papel pardo! E o açúcar que ele trazia, adoçava o meu café da manhã, embora continuasse a ser pardo. Agora, para esta página negra a embrulhar a minha vida, ninguém assume quem escolheu a cor. E, se sempre gostei de cores alegres, neste momento continuo a precisar delas para ver o horizonte como dizem que é, e não esta parede negra que me barra a vida. Eu quero sonhar o futuro dos meus netos, quero dizer-lhes que vale a pena estudar, que vale a pena a cultura, também a nossa! Não quero que lhes roubem o lanche, porque o colega, que ficou com fome à hora do almoço, comeu o que tinham levado. Todos têm direito a não ter fome! Mas há quem pense e diga que basta esticar... O que não há?
Grito, famosa obra do pintor
 norueguês expressionista Edvard Munch

    E esta parede não recua, como o horizonte, quando me desloco. Pelo contrário! Se tento saber quem se endividou e agora falsificou a minha assinatura para que eu pague a letra ao banco, no lugar de resposta, constroem-me mais uma parede negra!
     Não se esqueçam da minha situação! Estou a ser cercada: já me rodeiam duas paredes negras!
    Sento-me para pensar no passado. Deem-me um bocadinho para descansar e recobrar forças.
E vem-me à memória um dia de celebração do aniversário de uma criança. Um amigo estava inquieto e partilhou aquilo que o agitava. “Soube hoje que Bruxelas aprovou ajuda a Portugal. Nem imaginam o dinheiro que aí vem!” E quisemos saber a que se destinava o dinheiro. A empresa onde trabalhava tinha sabido em primeira mão e, no dia em que obteve confirmação privilegiada, avançou com a assinatura de contratos pré-preparados para fornecer equipamentos informáticos a duas universidades e alguns hospitais. Nesse dia o meu amigo tinha assessorado a nível técnico, para que o cenário da “confiança entre as partes” fosse montado. Não assistiu à assinatura de nenhum desses contratos milionários, mas sabia que meia dúzia ia enriquecer.
Ironia! Hoje, a tal criança tem 29 anos, é engenheiro informático e, depois de cinco anos a acumular formação no estrangeiro, o país não o quer. Vai ficar um estrangeirado! Na nossa história já tivemos estrangeirados. Será que estes também regressarão, um dia?
Enquanto recobrava forças, pensando secreta e ingenuamente que talvez se esquecessem de me obrigar a pagar ao “banco a conta que não contraí, nem devo, mais uma parede negra apareceu a cercar-me. Basta! Não quero morrer de frustração! As ruas que construíram com os meus impostos, também são minhas… e vossas! Lá nos encontraremos!

4 comentários:

  1. São os sonhos perdidos de uma geração que ousou querer um mundo diferente! Muitas vezes penso como nos andámos a enganar sem sequer darmos conta disso. E, no entanto, só queriamos dar aos nossos filhos melhor do que tivémos. Era importante a formação, a cultura, apetrecharmos os jovens de instrumentos que lhes permitisem ir mais longe, mais além! Démos-lhe formação: prescindimos de quase tudo para investirmos neles. E agora? Agora dizem-lhes: emigrem! Não precisamos de vocês cá. Esta terra não está para oportunidades... Garanto-lhe: apetece-me, como a Edvard Munch, esconder o rosto entre as minhas mãos e... gritar! Gritar até que alguém nos ouça (ou até ouvir alguém.
    Parabéns, Fernanda! Excelente para nos pôr a pensar!

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  2. Acabo de ser informado do nascimento deste blogue, num tempo em que o
    evoluir tem de ser norma essencial da vida. Congratulo-me com esta
    presença, que espero duradoira, na blogosfera, onde a partilha deve
    ser constante. O mundo em crise precisa ingentemente de gente capaz de
    enfrentar desafios, de apostar na criatividade e de avançar para a
    solidariedade. Os meus parabéns, com votos dos maiores êxitos.



    Fernando Martins

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    Respostas
    1. Obrigado, Professor!
      Ficamos, uma vez mais, muito orgulhosos por o termos ao nosso lado a partilhar os nossos olhares por esta vida que nos pertence e queremos sempre melhor.
      Contamos consigo, com as suas criticas,sugestões,com a sua visão minuciosa e atenta a tudo o que nos rodeia e simultaneamente nos perturba, nos exige,nos interpela e nos obriga a continuar em frente.

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  3. Com textos destes como é possível deixar de ser louco? Escapatória, podia ser só(?)algo muitíssimo bem escrito!
    Mas...é verdade, é real e é mais uma história dentro desta história que nos cerca, nos incomoda, nos asfixia...
    Para quando o virar de página?
    Acredito que "páginas" como esta serão um forte contributo.

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