segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Fazedores de sonhos


                                                                                                                                 ©  Albertina Vaz    


Encontraram-se num vão de escada, disputando o espaço e meia dúzia de cartões que lhes serviam de abrigo. Naquela noite, cada um dormiu de costas voltadas. Não apareceu ninguém com sopa quente e as meninas das carrinhas deviam estar muito ocupadas com outros sem abrigo de outra rua. De noite, a fome apertava tanto que se enroscaram sobre si mesmos até adormecerem.

De manhã, acordaram abraçados e sorriram. Ela tinha uma cara rosada, bem queimada pela aragem fria, e um dente a menos que lhe conferia um ar extravagante e original. Ele vestia todas as camisolas que conseguira encontrar nos caixotes de lixo que, invariavelmente, rebuscava todas as noites. O cabelo espesso e desgrenhado e uns olhos azuis, qual mar pardacento num fim de tarde, tornavam-no um pequeno gigante que se gostava e se amava.

Foram dias e dias de descobertas sem fim – ruas insondáveis, caminhos sem saída e regressos ao ponto de partida, sempre que a noite chegava e o sol se punha. Falavam do presente e guardavam, numa cela fechada, um passado que não queriam partilhar. E sorriam, pedalando pela calçada deserta, num jogo de esconde e de descoberta.

À noite imaginavam presentes para se darem.

- Tenho aqui uma casa branquinha, com lareira acesa e uma estrela na porta da entrada – e desenhava, no ar, os contornos dum sonho que queria materializar.

- Olha, eu tenho aqui uma panela, cheia de sopa, e um café quentinho que vamos beber juntos. Chschschs … Está tão docinho!

- Pois eu quero dar-te um bolo, com passas e nozes, e um cálice de licor – e continuava desenhando no ar, presentes imagináveis que acariciavam a noite fria.

- Para ti tenho aqui os sonhos que a minha avó fazia e o cheirinho da canela no arroz doce que escorre da panela. Cuidado, não te queimes.

Era a noite a seguir ao natal.Do outro lado da rua, uma criança de colo sugava sofregamente o peito de uma mãe que se deixava escorregar da parede ao chão. Um som vazio e um choro chocante marcaram a realidade e destruíram a magia.

- Anda, vamos lá ver se encontramos alguma coisa para ela comer. O menino, se ela não come, também não tem leite e ele já está tão fraquinho. Ontem é que foi natal, hoje temos mas e que ir à vida e mudar este mundo.

Ontem foi a noite dos sonhos e as estrelas no céu anunciaram um caminho de luz. No mundo dos mendigos, partilhou-se a fome e, com um pouco de nada, construiu-se o Natal de todos os dias.


Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal

9 comentários:

  1. Palavras que enchem a alma! Parabéns!

    ResponderEliminar
  2. Para além da beleza deste conto, e da magia que os sonhos provocam em cada um de nós, tenho, sobre este assunto, uma opinião menos miserabilista. Hoje, penso não estar errado, só é sem abrigo quem não quer ser institucionalizado; quem não quer ter regras; quem associa à pobreza alguma marginalidade; quem, por diferentes razões, tem passivo com a justiça.
    Esta opinião não é redutora deste problema. Ele existe e deve ser dissecado. No entanto, convém sabermos que a acção social com os pobres, incluindo os sem abrigo, não se confina ao Natal; existe todo o ano, hoje mais alargada aos NOVOS pobres que ainda sobreviveram à Troika.
    A magia das prendas, aqui tão ternamente descrita, é mais intensa nesta quadra. Mas as verdadeiras prendas - actos, palavras, afectos - são mais necessárias e estendem-se por todo o ano.
    Pior que esta pobreza dos sem abrigo é aquela que não se mostra; é aquela que substitui medicamentos por contas da EDP; é aquela que põe na mesa os restos de nada e um pouco de crença: esta é a pior pobreza.
    Pobreza má é também o abandono dos idosos, dos idosos com abrigo que se confrontam com a solidão.
    Claro que este tema NATAL / POBREZA é bastíssimo.
    Quanto ao conto, deve dar os parabéns à Albertina Vaz que tão sabiamente borda a vida com as suas palavras.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Concordo plenamente consigo, Fernando. Realmente este tema pode ser encarado por muitas variantes. Esta foi uma delas. Pretendi trazer um pouco de poesia à vida dum sem-abrigo.Claro que, hoje em dia, existem inúmeras instituições que menorizam esta vivência. Mas também é verdade que viver na rua pode ser uma opção. Para alguns. O que não deixa de ser verdade é que, ir para a rua tem sempre subjacente qualquer coisa que, por detrás, correu mal. Obrigada pelas suas palavras que tanto me ajudam a continuar.

      Eliminar
  3. A pobreza e a solidão - dores que a imaginação, só por instantes consegue mitigar, dores ainda mais pungentes neste tempo de Natal. Um belo conto, Albertina.

    ResponderEliminar
  4. Gostei muito deste texto e apetecia-me dizer, porque gostei. Mas, entre várias razões, que vão desde o tema, à sua estrutura, passando pela bela poesia impregnada nas palavras, gostei da forma como este assunto foi abordado. Chamando ao protagonismo os sem abrigo, com a sensibilidade que te carateriza, trataste por tu o tema Natal. Gostei muito e espero que este reinício do Evoluir seja o pronúncio de que te possamos ler com mais regularidade.

    ResponderEliminar
  5. De Natália Vale recebemos o seguinte comentário:
    Muito bom amiga. Obrigada pela partilha com a 13. Continuação de Boas Festas. Beijinhos

    ResponderEliminar
  6. De José Teixeira recebemos o seguinte comentário:
    Um tema quente em noite fria, aquecida com o calor dos nadas e sonhos que se transformam em afectos. Adorei.

    ResponderEliminar
  7. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    A nossa menina e escritora Albertina, já nos habituou a ver as coisas com determinados ângulos e várias facetas. Veja-se como encheu de ternura um caso completamente despido dos direitos humanos. Obrigado pela partilha. Continua

    ResponderEliminar
  8. De Júlia Sardo recebemos o seguinte comentário:
    Parabéns, Albertina. Ao ler este texto fiquei deveras emocionada. Não há dúvida que o real da vida é triste.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...