sábado, 29 de agosto de 2015

Filhos de pais sem filhos

Albertina Vaz 


Encontrei-o num estado deplorável: triste, acabrunhado, deprimido. Mal me olhou, as lágrimas soltaram-se numa torrente infinita. Nem sabia o que lhe havia de dizer. Aquelas palavras de circunstância, aquelas frases que não dizem nada desprenderam-se-me, sem grande convicção. Afinal o que se passara? Seria tão grave assim? Não haveria nenhuma solução?
...do primeiro sorriso, do primeiro
dentinho, dos primeiros passos
Sentei-me a seu lado tentando consolar-lhe uma dor que não sabia donde provinha mas que pressentia ser de uma dimensão sem medida.
Lentamente, soluçando, foi-me falando das suas recordações, do primeiro sorriso, do primeiro dentinho, dos primeiros passos. Dos passeios intermináveis que davam juntos, das conversas que mantinham ao nascer do sol quando se levantavam cedinho e caminhavam à beira mar escutando o barulho das ondas e o silvo das sereias. Das mágoas que desabafavam e das alegrias que partilhavam.
Dos dias em que o ia buscar à cama e o destapava para o acordar, das vezes que rebolavam misturando-se na areia da praia, das gargalhadas que trocavam juntos, das corridas que o obrigava a fazer e até daquela queda quando um dia o atirara – sem querer, claro – contra um carro à beira do passeio. Dessa vez quase ia partindo a cabeça mas até isso se tornara uma diversão. Atiravam-se um por cima do outro, faziam-se intermináveis cócegas e riam – riam muito.
De quem falava afinal?
Estava eu própria a ficar perturbada – falava-me de certeza de alguém muito próximo com quem convivia todos os dias e partilhava muitos segredos. Mas eu sabia que ele nunca tivera uma companheira, namorada ou amiga. Sabia que uma infância difícil e uma juventude perturbada o afastaram da família e quebrara as pontes que o haviam ligado ao outro lado. Sabia-o muito introspetivo, senhor de si mesmo, metido no seu canto, com grandes dificuldades de comunicação, sem grandes amigos e poucos conhecidos.
De quem falava afinal?

domingo, 16 de agosto de 2015

Uma vida!

José Luís Vaz

 Estou aqui, há tantos anos, que já nem me lembro da quantidade de nomes que já tive. Desde Carlota Joaquina a Raul Rego passando por rua da Esperança e outras, tudo me têm chamado. Conforme a onda, assim me tratam: não há dinheiro, fico cheiinha de buracos, vem graveto, escondem-me logo as misérias. É a minha sorte, comer e calar e, ainda por cima, ser pisada por toda a gente.
Quando nasci, tenho uma vaga ideia de que era mais curta, havia menos gente e precisariam menos de mim… levava o tempo incomodada com a poeira que era quase permanente, porque, por aqui, eram burros, cavalos, bicicletas, motas, eu sei lá, tudo o que mexia por aqui tinha que passar.
...eu é que sou o centro das atenções.
Mais tarde, lavraram-me, como quem prepara a terra para uma sementeira, e toca de me encherem de pedrinhas. Ainda pensei: querem fazer de mim uma pedreira...mas não, a seguir, taparam-me todinha com alcatrão a abrasar e eu a aguentar… A partir daí ladearam-me de prédios, uns altos, outros baixos, bonitos uns, aberrantes outros, mas a rainha sou eu, eu é que sou o centro das atenções.
Se eu fosse a contar tudo o que ouço, nunca mais me calava. Ainda outro dia fiquei aparvalhadinha de todo com uma conversa entre mãe e filha. Dizia a mãe: não entendo, o teu emprego é das nove às dezoito horas, e tu, tornou-se num hábito, chegas sempre tarde e a más horas a casa.
- Ó mãe, estou farta de te dizer que não posso virar costas ao Sr. Dr. Ele, lá no escritório, tem sempre muito que fazer, e, para além de ter que o ajudar, não estamos em tempos de facilitar. Sabes muito bem o que me custou arranjar este emprego!

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Vestida de andorinha

Elsa Borges 

Naquela noite nem dormira. Nunca a escuridão me incomodara tanto. Como desejara viver em liberdade, correndo pelos pastos floridos atrás das ovelhas e das cabras, acompanhada do Fiel que, de orelhas no ar, mal eu assobiava, parecia uma flecha a correr ao meu encontro. Viver assim para sempre. Sem pressas e sem ambições de vida de cidade.
Como ia sentir a falta de chapinhar no ribeiro, sacudindo a terra dos tamancos, quando ao cair da tarde regressava com o rebanho.
Havia também aquele amor escondido, no fundo do meu peito, calado e só meu, pelo filho do vizinho, que todas as manhãs, bem cedo, partia apascentando os seus animais. Os jogos que fazíamos, as corridas com os cães, em que o meu Fiel batia sempre o Malhado. E, sobretudo, havia aqueles doces momentos em que ele me oferecia ramos de flores apanhadas no monte e atados com nagalhos.
Não havia dúvida, estava mesmo de partida. Quando me levantei, topei logo na cesta de palha em que a minha mãe tinha metido meia dúzia de trapos, uns tamancos novos, um xaile e uma capa de burel, que havia de usar lá, para onde me mandavam, na companhia da minha tia.
Sabia que ia servir para a mesma casa em que, a irmã mais nova da minha mãe, tinha servido desde os doze anos.
...o lenço atado no queixo, a cesta
na mão...
– Ainda tens sorte – dizia-me minha mãe – A tua tia quando foi servir tinha menos dois anos do que tu. Não tinha lá ninguém conhecido. Comeu o pão que o diabo amassou, para chegar onde chegou. Tu também podes vir a ser uma senhora.
A minha mãe devia querer consolar-me. Mas esta era uma forma assustadora de o fazer. O que quereria dizer com “o pão que o diabo amassou”? Devia ser algo terrível!
Estava sentada no canto da mesa, com a malga das sopas, pensando que esta era a última vez que ali engolia o almoço. A minha garganta tapou, o que tinha na boca veio fora, quando a minha tia, já com o lenço atado no queixo, a sua cesta na mão, apareceu para me buscar.
– Anda rapariga, despacha-te – balbuciou ela numa voz tremida que revelava comoção e pena – Olha que a carreira está achegar. Nós não somos nenhumas fidalgas, ela não espera.
Levantei-me, tentei pegar nos meus trapos. As minhas pernas tremiam e foi quase ao empurrão que a minha mãe me pôs para fora de casa:
– Vai, cachopa, faz-te à vida, ou queres viver nesta miséria para sempre?
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