domingo, 16 de agosto de 2015

Uma vida!

José Luís Vaz

 Estou aqui, há tantos anos, que já nem me lembro da quantidade de nomes que já tive. Desde Carlota Joaquina a Raul Rego passando por rua da Esperança e outras, tudo me têm chamado. Conforme a onda, assim me tratam: não há dinheiro, fico cheiinha de buracos, vem graveto, escondem-me logo as misérias. É a minha sorte, comer e calar e, ainda por cima, ser pisada por toda a gente.
Quando nasci, tenho uma vaga ideia de que era mais curta, havia menos gente e precisariam menos de mim… levava o tempo incomodada com a poeira que era quase permanente, porque, por aqui, eram burros, cavalos, bicicletas, motas, eu sei lá, tudo o que mexia por aqui tinha que passar.
...eu é que sou o centro das atenções.
Mais tarde, lavraram-me, como quem prepara a terra para uma sementeira, e toca de me encherem de pedrinhas. Ainda pensei: querem fazer de mim uma pedreira...mas não, a seguir, taparam-me todinha com alcatrão a abrasar e eu a aguentar… A partir daí ladearam-me de prédios, uns altos, outros baixos, bonitos uns, aberrantes outros, mas a rainha sou eu, eu é que sou o centro das atenções.
Se eu fosse a contar tudo o que ouço, nunca mais me calava. Ainda outro dia fiquei aparvalhadinha de todo com uma conversa entre mãe e filha. Dizia a mãe: não entendo, o teu emprego é das nove às dezoito horas, e tu, tornou-se num hábito, chegas sempre tarde e a más horas a casa.
- Ó mãe, estou farta de te dizer que não posso virar costas ao Sr. Dr. Ele, lá no escritório, tem sempre muito que fazer, e, para além de ter que o ajudar, não estamos em tempos de facilitar. Sabes muito bem o que me custou arranjar este emprego!

- Ó filha, tomara ele lá ter sempre uma rapariga desenxovalhada como tu.
Lá continuaram na conversa mas, como se dirigiram para aquela ruita ali de cima, deixei de poder dar fé em que é que aquilo ia acabar… Aqui, há tempos, era um rapaz que usava pêra e bigode que vinha com o pai. Dizia ele: ó pai, hoje, quando ia a entrar no café, lá ao pé de casa, aquele nosso antigo vizinho, o Sr. Tomé, lembras-te, um senhor que era muito simpático, vira-se para mim e diz-me: Então menino, há tanto tempo que o não via, está um homem!
Claro que respondi, amavelmente, cumprimentando-o. Ele, sempre muito brincalhão, não esteve com meias medidas:
– Então, pelo que vejo, deixou crescer a barba… agora só lhe faltam uns corninhos para ser como um bode.
– O quê, o Sr. Tomé, disse-te uma coisa dessas, e tu, filho, não lhe respondeste?
– Respondi. Olhe Sr. Tomé, a mim só me faltam os corninhos, ao Sr., possivelmente, só as barbas…
Sou uma velha rua, e assim passo pelo tempo ou o tempo por mim, já nem sei bem, aqui estou, há uma vida.
           

José Luís Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

1 comentário:

  1. O que não teriam para nos contar as ruas por onde passamos todos os dias! Esta é uma rua atrevida - sabe o que não deve, escuta o que é segredo e divulga o que ninguém quer que se saiba.
    Este é um trabalho bem divertido, que se gosta de saborear, nestes tempos de verão, quando o calor convida à preguiça e aos dias em que as palavras não saem tão facilmente da ponta da caneta. A persistência leva-nos assim a caminhos que nem sequer imaginámos percorrer. Gostei muito, Zé Luís, mas gostei sobretudo de te ver persistir.

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