terça-feira, 30 de setembro de 2014

VIVÊNCIAS DE ESCRITA

Fernanda Reigota

Quatro duplas vivências de escrita nas suas vertentes antagónicas: TEMPO, ESPAÇO, PERSONAGEM, AÇÃO. Foram estes os elementos que deram corpo ao psicodrama que em mim se desenrolou: o som da ave da imagem que fotografei muito impulsionou esse psicodrama.

PRIMEIRA
Tempo sem tempo

Corria aquele mês em que o tempo é lento.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
Mas os olhos sem tempo não colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo e ele aí estaria, o mês perfeito.
Mas os olhos queriam o Norte e o tempo deslizava para Sul.

Sem rumo, sem norte, que apareça a Estrela Polar.
A noite dos tempos envolveu os mares, a terra e a vida,
Mas o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

Tempo com tempo

Corria aquele mês em que o tempo é leve.
De tempos a tempos uma ave deslizava,
E os olhos com tempo colhiam o momento.

O céu, no seu tempo, continuava azul.
Dar tempo ao tempo! Eis o mês perfeito.
E os olhos deslizavam de Norte a Sul.

Com rumo e com norte apareceu a Estrela Polar.
A noite dos tempos desvendou os mares, a terra e a vida,
E o Sol, no céu cristalino, continuou a brilhar.

SEGUNDA


Espaço sem espaço

Curva de estrada
Nuvem parada
Janela fechada
Rosa muralhada

Barcos sem cais
Ilhas infernais
Casas transversais
Sentimentos superficiais.                                    

Afetos nevoentos
Abraços cinzentos
Seres pardacentos.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Outra visão da vida

João morava na capital. Filho único de uma família mediana, na impossibilidade de entrar na Universidade estatal por falta de média, frequentava o segundo ano de economia na Universidade Lusíada. Os pais faziam o sacrifício económico, porque até então João não tinha perdido um único ano. Conheceu a namorada, de seu nome Sofia, na escola secundária e desde então nunca mais se largaram.    
Gostava de se divertir com os amigos
Era um jovem igual a tantos outros, não lhe eram conhecidos vícios, mas gostava de se divertir com os amigos, namorar e ir aos bares do Cais da Rocha aos fins de semana. Aos domingos de manhã, em qualquer época do ano, ia surfar para o Guincho, outra das suas grandes paixões. Remar para uma onda, apanhá-la, envolver-se e acompanhá-la, navegar na crista e meter-se dentro do túnel deslizando ao sabor da mesma era como viver o sonho de sentir o oceano em toda a sua plenitude. O stress duma semana de trabalho estudantil e o caos citadino eram postos para trás das costas. O voo rasante das gaivotas e o barulho das ondas era a perfeita harmonia para uma liberdade total.    
Compreendendo o sacrifício que os pais estavam fazendo, tinha como objetivo principal não chumbar ano nenhum e, mesmo que deixasse alguma disciplina para trás, iria fazê-la no semestre seguinte.  

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Até onde pode ir a conversa…

Era quase noite e a tarde teimava em não se despedir. O sol, ou as réstias dele, lá ao longe, projectava uns raios indecisos entre o laranja e um vermelho tão forte que mais parecia sangue, raiando o vale verdejante subdividido em pequenas parcelas. A manta de
A manta de retalhos
retalhos, um verdadeiro jardim, lindo de ver, árduo de trabalhar, espelhava uma agricultura tipicamente minifundiária que teimava em persistir romanticamente à espera de que alguém, quem sabe, um D. Sebastião, fizesse o milagre com a terra como a Rainha fez com os pães. Este quadro deslumbrante, embora perspectivasse natureza morta, era a paisagem assombrosa avistada dum pequeno jardim, onde naquele fim de tarde, como noutros, um avô usufruía do seu maior gozo: ver brincar os netos e com eles partilhar um diálogo permanente nem sempre inspirador de liderança porque a ternura falava mais alto e o resultado era bem compensador.
— Noni…noni…noni…noni… foge avô, tu não ouves?
— Mas não ouço o quê? Afinal quem me persegue?
— É o carro dos bombeiros. Houve um fogo numa casa… foge, foge, avô…
Pronto e perante tal urgência, não havia outra atitude, obedecer e imediatamente. Retirava
Foge avô, tu não ouves?
mais umas folhas velhas de um canteiro e assobiando uma das suas modinhas preferidas preenchia um pouco mais de tempo, até que as crianças quisessem fugir do anoitecer. E à procura de luz entravam netos e avô em casa acabando com o sossego que àquelas horas alguns reclamavam depois de um dia de trabalho.
— Ouve lá Mafalda, tu queres ser bombeira?
— Sim, avô.
— Mas sabes que ser bombeira é uma profissão muito perigosa. Os bombeiros correm muitos perigos quando andam a apagar os incêndios e…
— Ó avô, mas eu não quero ser a bombeira que vai apagar os fogos. Eu o que quero ser é a chefe que manda os bombeiros trabalhar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O anjo da fome

               Uma em cada oito pessoas no planeta passa fome, destaca um relatório divulgado pela ONU em 2013.

    Um dia vi uma colega desmaiar na sala de aula. Sem aparato. Sem aviso prévio. Um busto de criança ruindo sobre o tampo da carteira, é isso que eu recordo. Depois, num quase sussurro, o diagnóstico a passar de boca em boca: fome. A menina padecia de fome.
    Finais da década de 1940. Um tempo de profundas desigualdades sociais. Em muitas aldeias do interior, a pobreza era endémica. Quando o trabalho e o pão faltavam, punha-se a esperança na caridade do próximo. Ou então, com alguma sorte, emigrava-se. Ou então, discretamente, como quem pede desculpa por incomodar, desmaiava-se de fome.
    Segundo Herta Müller, o anjo da fome, quando chega, chega em força. Apedreja os corpos por dentro, derrubando aos poucos o vigor e a dignidade.
    É inverno na minha memória sempre que recordo aquela coleguinha de escola tombando como punhado de neve sobre a carteira. Não há um único som colado à imagem. Porque a fome amordaça as vítimas. Porque a fome labora em silêncio.
Porque a fome labora em silêncio
    Foi nessa manhã, diferente de todas as outras manhãs, que pela primeira vez a minha infância de bem-estar chocou de frente com uma realidade tão próxima mas tão desconhecida. Sendo criança, arquitectei um plano de criança. Como nos contos de fadas, imaginava eu, uma maçã, um pão com marmelada, um chocolate, oferecidos no recreio, iriam magicamente revigorar aquele corpinho desnutrido. Oh, a alegria de ter para dar! Oh, o constrangimento de ser eu a dar, a vergonha de poder envergonhar quem das minhas mãos recebia!
    Cedo, porém, me apercebi de que qualquer semelhança entre a vida e um conto de fadas é mera coincidência. Vindos de várias regiões do planeta, diariamente nos chegavam relatos de conflitos políticos e civis, de gritantes injustiças na distribuição das riquezas, de trabalho forçado, de guerras. Ali estavam foto-reportagens enfatizando tais notícias. Ali estavam, em primeiro plano, corpos desvigorados onde a fome traçara a geometria da morte. 
    Esqueci há muito o nome da coleguinha que, esfaimada, desmaiou sobre o tampo da carteira, mas nunca conseguirei esquecer o gelo que nesse momento encheu a sala de aula, nem o arrepio tatuado na minha pele.
    São sempre anónimas as crianças que chamam a nossa atenção nas imagens ainda hoje captadas em zonas de extrema pobreza. Nos olhos de todas elas, o silêncio exangue da fome. Algumas seguram tigelas vazias. Outras, dobradas como bichos, a boca rente ao chão, tentam aproveitar as migalhas caídas. Outras, esqueletos cambaleantes, mal conseguem prender com o arame dos seus dedos o quase nada que, de tempos a tempos, lhes é caritativamente distribuído.

    O anjo da fome, quando chega, chega implacável. Lança-se em voo picado sobre os milhões de não-eleitos. Nunca são brancas as asas do anjo da fome.

Helena Maltez ©2014,Aveiro,Portugal
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