segunda-feira, 28 de abril de 2014

As vivências de Deolinda com os animais

Tinha acabado o Verão. Ia começar a escola.Era hora de começar a preparar a mala com tudo o que era preciso. A mala?
Como era a mala? Era uma bolsa feita de pano riscado ou então de cotim azul-escuro, ou de lona, que apertava com um botão e tinha uma alça para pendurar ao pescoço.
O que se punha na mala? O que se podia comprar: uma lousa preta, um ponteiro e um caderno de duas linhas para se fazerem as cópias.
A lousa e os ponteiros
O caixilho da lousa tinha um buraquito para se atar um fio e na ponta deste, uma almofadita para se limpar a lousa, quando se errasse alguma conta, isto, quem tinha uma mãe habilidosa para a fazer, porque se não houvesse almofadinha, a lousa era limpa com cuspo e a manga da camisola.
Tudo isto a Deolinda tinha preparado, mas no momento de ir para a escola recebeu um recado do pai: tens de te preparar, porque não vais para a escola. Chega de malandrice; vais mas é trabalhar, que já está bem na hora.Os teus irmãos são pequenos e tu já podes fazer alguma coisa pela família.
Deolinda tinha o destino traçado pelos pais. Ia servir para a casa de uns lavradores.Era uma criança pequena para a idade; atarracada.
Logo que teve conhecimento do seu destino, não ir para a escola, que era onde ela mais gostava de andar, os seus sonos começaram a ser agitados, cheios de pesadelos, que a deixavam sempre amargurada.
Os dias passaram a ficar negros, de tanta tristeza.
Enfim; chegou o dia de se mudar para a casa dos tais lavradores. Logo pela manhã, foi ao quarto buscar o saco, onde levava a pouca roupa que tinha. Com grande tristeza despediu-se dos pequenos irmãos e da mãe.O pai foi levá-la e esse gesto fez com que nunca mais visse o progenitor com carinho.
Lá ficou entregue como se fosse uma mercadoria. Olhava para as pessoas com tristeza o que não passou despercebido à senhora da casa. Com o seu instinto maternal compreendeu-a e a partir daquele momento, fez dela uma filha. Deolinda ficou feliz.
Depois de lhe terem sido distribuídas as tarefas que tinha de fazer todos dias, ela começou a explorar outras coisas em que tinha prazer. Conheceu uma pequenina bezerra que tinha nascido há poucos dias. Foi como um brinquedo. Todos os dias depois das tarefas feitas, ia visitar a sua amiguinha. O próprio animal, quando a via, já se aproximava. Fazia-lhe muitas festinhas, conversava um pouco e só depois ia deitar-se.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nós agora somos carne para canhão…

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação



Nós agora somos carne para canhão. Parecemos aqueles pequenos jovens que não sabem para o que vão, os da infantaria, os primeiros a caminhar, os primeiros a morrer por uma causa que nunca foi deles.
Somos isso mesmo: carninha, uma mais arranjadinha, outra coitadinha, mas tudo à feição de entrar no canhão e BUM.
Rua do desemprego.
Bum é igual a rua. Rua do desemprego. Rua da incerteza. Rua da amargura. 
Rua que o teu posto foi extinto. Rua que não se adaptou às novas tecnologias. Rua que isto. Rua que aquilo. Rua aí vamos nós para a praça fazer a revolução dos mal pagos e revoltados.
Ninguém na praça. Deserta, e as pombas. Um casal dá-lhes migalhas de pão.
Na praça alguém pintou num banco de jardim: aqui se sentou um trabalhador despedido. Novo para a reforma. Velho para o activo. 
Quando acabou de escrever a tinta vermelha o slogan do nosso país, dedicou o resto do seu dia a pedir carimbos para apresentar no fundo de desemprego.
- Então, Senhor José, está tudo preenchido?
- Está sim, minha senhora, um carimbo por semana.
- Já se inscreveu nos novos cursos que saíram?
- Já sim, minha senhora, inscrevi-me no "Introdução à Cidadania".  A minha mulher vai fazer um de costura.
- Fizeram bem. Serão subsidiados os transportes e a alimentação. Fizeram muito bem.
- Obrigada, minha senhora.
Seis meses de tardes ocupadas. Dois meses depois recebem alguns cento e cinquenta a duzentos euros na conta bancária. VIVA 


A menina de há pouco que trabalha afincadamente para o estado porreiro que dá muitas coisas às pessoas, chega a casa e o marido que perdeu o emprego numa empresa de calçado que se mudou para a China já está a fazer o jantar.
- Cheira bem, Rodrigo.
- Fiz sopa de feijão. Para não ser sempre apenas couve branca.
- Fizeste bem, meu amor.
- Alguma sorte hoje?
- Entreguei alguns currículos. Alguém me há de chamar.
- Sim, tenho a certeza.

domingo, 13 de abril de 2014

Ficara estranha e subitamente amante de fotografia.

E quantas vezes partia para a caça de imagens e só noite feita regressava!
Uma bela manhã, ainda o Sol se não erguera, partiu com outros fervorosos adeptos da caça de imagens únicas. Encaminharam-se para o cimo da serra, por uma cerrada mata e por um caminho de poucos conhecido.
Pararam uns momentos para degustarem a música de uma cascata que se adivinhava. A frescura que os salpicos lançavam em redor acariciava a pele sofrida pela subida. Mais que uma vez, dobrada a encosta, tinham conseguido surpreender o encanto de testemunharem o beijo da noite a despedir-se do dia que começaria o seu reinado de luz clarificadora. Uma vez tinham até estacado perante a hipótese de fixarem a imagem daquele veado que quase se deixara surpreender a matar a sede, numa alvorada já quente do mês de maio. João tinha em casa esse troféu. Fora o único a conseguir a composição perfeita e a luz excelente. Ainda hoje se interrogava sobre a expressão do olhar do animal apanhado no momento de iniciar a fuga.
O sol nascera, enfim. Ao longe, o mar era um reflexo único de um dia que se adivinhava esplendoroso. Mas no fundo dos vales que iam dar à costa, grandes rolos de nevoa ainda preguiçavam o doce aroma que a noite lançara sobre a terra. Duas boas horas já haviam passado e nem um enquadramento especial, nem um ângulo para realçar uma copa perfeita de árvore, nem uma pedra evocadora de uma figura…
Aquele grupo de caçadores de imagens porfiava serra acima. Em breve apontariam as objetivas ao trajeto ascendente do Sol, ao contraste dos variados verdes da serra ponteados por pequenos lagos tão brilhantes que simulavam os olhos da serra, espantando-se com a magnificência de mais um esplendoroso dia de maio. Não faltavam manchas de alfazema, caminhos ladeados pelo amarelo da giesta, verdes mimosos dos rebentos novos dos pinheiros, árvores a vestirem-se de folhas macias para se juntarem à festa da renovação da natureza…

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Havia que decidir

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Havia sido educada com princípios. Decisão tomada era para ser acatada até à sua concretização plena. Os valores morais que a enformavam eram de uma rigidez e pureza marmórea, que apenas admitia o suave retoque, tendo como alvo atingir o cume da perfeição, sem que pudesse colidir com a intrínseca natureza das coisas.
Valores morais 
O que apreendera nos livros do sistema escolar, era uma verdade dogmática. Quem escreveu aqueles textos é porque estava seguro nos princípios definidos e estava autorizado a proclamá-los porque sabia magistralmente do que falava.
As relações cívicas com quaisquer pessoas, conhecidos ou desconhecidos, exigiam sempre dela, ponderada reflexão e escrupuloso prurido, no seu contabilístico exercício de sopesar ou medir os prós e contras.
A frequência nos estudos universitários tinha sido assumida com determinação e rigor, na abertura ao conhecimento, com as conceções, expendidas nos livros, a ajustarem-se ou a acrescerem aos seus juízos de valor. A formação académica aditara-lhe uma sólida cultura, não obstante as filosóficas interrogações do seu ego em relação à sua origem e ao seu futuro.
Aceitava-se como mulher com sorte, o que exibia entre as amigas e companheiras de curso.
Aceitava-se como mulher com sorte
Após o seu mestrado, ao abrigo do programa Erasmus, em terra estrangeira, concorreu e obteve o lugar docente na escola da sua preferência.
A sua juventude despertou e começou a fazer exigências. O coração manifestava-se em desejos de preencher a lacuna que se abria, mas a razão coartava-lhe os impulsos constantes. A razão era como um freio na voracidade do sonho. A luta constante travava-se entre o dever e o ser. Tréguas não havia. Qual venceria?
A jovialidade do Heitor, a sensatez cultural do seu humor e a sua inteligência, enobreciam a boa figura física de um companheiro de escol.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Eu, Vaidoso

Que bom o cheiro do mato! Passava o ano a sonhar com a época da caça: via-me a saltitar por entre os pinheiros, a farejar as urzes rasteiras, nem sentia as picadas dos tojos de bicos aguçados quais lanceiros em permanente emboscada. E que excitação quando descobria o coelho alapado na lura ou escondido numa moita! Obrigava-o a sair e, com a adrenalina ao rubro, movia-lhe uma perseguição sem tréguas que habitualmente era coroada pelo tiro certeiro da espingarda.
A abertura da época era um dia de festa. Mal despontava o sol, o Tó, habitualmente pouco
Eu e as minhas cadelas
madrugador, cheio de entusiasmo, fazia a chamada:” Vaidoso, Joaninha, Pintada de Fresco!” De cauda a abanar e orelhas em riste, não contendo a nossa alegria, acercávamo-nos do portão. Que alvoroço! Passávamos as ruas da aldeia num alarido que despertava todas as atenções. O Beto, ainda adolescente, já ia tocando a trompa. O que ele se divertia quando alguma dona de casa, confundindo o toque com o do peixeiro, acorria de prato na mão. Certa vez, fingindo-se zangada, a Ti Ressurreição, no seu jeito virulento, disparou-lhe uma rajada de palavrões. Foi uma risada. Muito loucos aqueles rapazes!
O início do outono, habitualmente soalheiro, convidava a almoço na mata. As meninas carregavam os cestos até ao local combinado – o Padeiro. Ali, sentados nos valados musgosos, comia-se apressadamente aquele almoço que bem merecia uma degustação mais prolongada. Mas não havia tempo a perder.
Aqueles coelhos e perdizes...
eram também os nossos troféus
Ao pôr do sol regressávamos a casa, cansados, mas orgulhosos – aqueles coelhos e perdizes que pendiam dos cinturões deles eram também os nossos troféus.
O entusiasmo repetia-se época fora aos domingos e feriados e sempre que o Manuel, ao fim do dia, conseguia fazer uma escapadinha ao Vale Ramalheiro ou, quando muito, até ao Monte Sol. Lá ia eu, o líder da matilha, e as minhas cadelas. Calcorreávamos os carreiros pedregosos, galgávamos silveiras, dessedentávamo-nos nos regatos, passávamos a vau as azinhagas já transformadas em ribeiros pelas pesadas chuvas do inverno. Para atenuar a fome, às vezes só umas côdeas – ainda me cresce água na boca quando penso na broa doce que a Emília fazia na época dos Santos. Nem a fome fazia abrandar o meu entusiasmo. Mas um dia tudo mudou, um dia sinistro. Olhem, foi no Padeiro: ia eu a correr encosta acima a perseguir um coelho, os olhos do Manuel, encandeados pelos raios do sol, que se despedia, confundiram-se. Senti uma saraivada de chumbo a varar-me os flancos e tombei desamparado entre as moitas, desmaiado. Quando acordei, o sol já se escondera por trás dos montes, um manto negro de silêncio envolveu-me a alma, que parecia querer despedir-se do meu corpo destroçado. “Ai Vaidoso, Vaidoso, chegou a tua hora!”
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